Dois mil e vinte e dois. O ano começou faz uns dias e agora a gente volta a se falar por aqui após breve recesso. Como foi a virada por aí, tudo bem? Eu passei o réveillon sozinho em casa mais uma vez, porque fiquei com a garganta arranhando nos últimos dias de 2021 e, mesmo testando negativo para covid, achei mais prudente não me encontrar com ninguém.
Nessas semanas em que não te escrevi, fiquei pensando quais temas poderia abordar quando voltasse, e confesso que não me passava pela cabeça retomar o papo falando de novo sobre a pandemia. Infelizmente o assunto voltou a ocupar bastante minha cabeça e não consigo evitar falar dele, de como a impressão que tenho agora é a de que tivemos breves férias disso também, e agora voltamos à chatice rotineira. Novo normal, não é? De pausas e retomadas também foi a minha leitura de um livro que até já citei aqui há alguns meses, Contra Mim, compilado de memórias do Valter Hugo Mãe.
“E eu sossegava as plantas. Quero dizer, tinha uma compaixão sofrida pelas coisas indefesas, as que apenas procuravam a beleza de crescerem, em silêncio, sem pedirem nada, talvez em profunda meditação e mais nada. Tinha pena das plantas nos temporais.”
Da outra vez que falei desse livro, disse que ele escrevia sobre si mesmo com generosidade, e isso acabou me dando uma certa preguiça. A infância é o principal período tratado pelo autor, e é como se quisesse compor em um autopersonagem menino o ponto de partida de sua ficção. Fui lendo aos poucos, intercalando com outras obras, e insisti em terminar mais pelo meu apego aos seus romances do que pela experiência dessa leitura específica. Enquanto Valter demonstrava ter sempre tido a alma de poeta que emprega em sua prosa, eu refletia: Será que meu gosto mudou e não me agrada mais esse autor que já me fascinou tanto?
“Quando me sentia preterido, olhado de lado por ser aquela criança silente, perguntava se me haviam encontrado no lixo, tomado de entre porcarias que sobravam dos cozinhados, as peles de galinha e ossos, entre a levedura que cheirava a podre. Dramatizava para a compaixão de todos. Adiantava nada.”
Outra hipótese para a minha rejeição ao texto tem a ver com a melancolia que permeia todo o relato, e que não é exatamente o que eu procurava agora, quando o dia-a-dia está tão saturado disso. Perguntei a alguns amigos sobre isso e pareceu unânime a sensação de que nos últimos anos todo mundo ficou mais aborrecido, calejado com a solidão forçada. Teve até um texto que circulou bastante nas redes sociais, chamando esse estado de “lassidão”.
No finalzinho do livro, já em uma seção de notas do autor, ele confessa que editou suas memórias para que soassem como um romance, e que retrata sua versão criança como alguém tão imaculado para, olhando em perspectiva, abençoar seu estado atual:
“Não sou mais o menino de belíssimas intenções que fui, essa criança de uma pureza que me inspira, mas quero muito ser ao menos a memória dela. Repeti mil vezes que já não sou boa pessoa, mas quero muito ser a memória de uma boa pessoa.”
Falando em memória, os anglófonos costumam usar a expressão memory lane (“rua da memória”), como se o processo de lembrar fosse uma caminhada. Acho bonito. Lá no começo dos anos 80, Zécarlos Ribeiro escreveu para o Grupo Rumo a canção Ladeira da Memória, citando a rua que tem esse nome no centro de São Paulo, em uma crônica muito delicada. Deixo aqui um vídeo dela com o intérprete de luxo Chico Buarque.
Acho que tenho perambulado demais pela ladeira da memória durante esses anos de isolamento, e agora que começamos a voltar, há a desilusão de não estarmos simplesmente retomando uma história pausada em 2019. A partir do exemplo do Valter Hugo Mãe lutando para ter em si o bom menino de sua infância, tento entender quanto eu quero ser a pessoa que eu era, quanto já sou diferente e o que fazer com tudo isso.
A imagem que abre este e-mail foi gerada por um bot de inteligência artificial no twitter. Você manda algum texto para ele, ele dá uma olhada na internet, faz os cálculos e gera uma imagem. Eu pedi “Sinto muito” e saiu aquilo lá. O perfil é este, caso queira experimentar.
E então voltamos. Não por acaso, tratando de pendências do ano passado. Obrigado a todo mundo que demonstrou expectativa com a volta, espero dar conta de manter uma conversa interessante. Para isso, tem uma novidade programada para semana que vem. Avisa seu e-mail que não sou spam e fique de olho.