Você conhece o Wikcionário? É um dicionário de conteúdo livre e editado coletivamente, qualquer pessoa pode contribuir. Como você já deve estar imaginando, ele é da mesma fundação que mantém a Wikipédia e vários outros projetos. Seu verbete da palavra “Coração” diz o seguinte:
órgão muscular que bombeia o sangue de certos animais
o âmago, o centro (”Isto é o coração dessa máquina”)
caráter (”Ela tem um bom coração”)
amor ("Estou com o coração dividido")
copas (naipe vermelho do baralho em desenho de coração)
[Simplifiquei um pouco os exemplos]
Ou seja, coração é um assunto versátil. Até nos emoji a gente tem uma diferenciação entre o coração iconográfico (❤️), que tem dezenas de variações, e o coração anatômico (🫀), que sequer é lido em qualquer dispositivo, talvez apareça como um quadradinho para você que está lendo num navegador de PC.
O que me fez ficar encucado com a definição de coração foi um trechinho que pincei em um livro que comecei a ler esses dias, Autobiografia, de José Luís Peixoto. Ironicamente, não se trata de uma biografia do próprio autor, e sim de uma história ficcional sobre outro escritor que existiu de verdade, José Saramago.
“É por felicidade que o coração não espera ordem para bater, que os pulmões se organizam autónomos na sua azáfama de respirar, até o mais anónimo cabelo sabe embranquecer sozinho.”
Além de demonstrar o brilhantismo de Peixoto com as palavras, esse trecho nos provoca com a lembrança de que, literalmente, a gente não controla o coração. E ainda me remeteu imediatamente à uma citação de outro livro que também mistura biografia e ficção.
A Morte do Pai é o primeiro volume da série autobiográfica de Karl Ove Knausgård, em que o autor relata eventos de sua vida de forma não cronológica e minuciosamente detalhada. A densidade de informações super precisas sobre diálogos e cenários de décadas atrás é o que causa mais estranheza na leitura, por te colocar tão presente em uma situação remota no tempo e no espaço. Juntando os seis tomos da saga, as memórias do norueguês passam de 3 mil páginas. E tudo isso começa, na primeira frase do primeiro livro, com uma consideração sobre o tal órgão muscular de que vínhamos tratando:
“Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para.”
Uma coisa leva a outra, e depois dessas definições impactantes em frases curtas eu tive que correr a outro autor, de quem descolei há pouco um livro só desse tipo de máximas (ou mínimas, como o próprio preferia dizer), Carlos Drummond de Andrade.
O Avesso das Coisas é um livro de aforismos. Aforismo, por sua vez, é um “texto curto e sucinto, fundamento de um estilo fragmentário e assistemático na escrita filosófica, geralmente relacionado a uma reflexão de natureza prática ou moral.” (segundo o Wikcionário). Em outras palavras, é uma espécie de tuíte numa folha de papel.
O Nietzsche escreveu muitos aforismos, o Tao Te Ching é um livro de aforismos (creditado ao filósofo chinês Lao Zi); até o livro dos provérbios da Bíblia é basicamente feito de aforismos, a diferença técnica é que provérbio é um aforismo de origem popular e/ou desconhecida.
No livro do Drummond a coisa é bem menos pretensiosa, tipo uma brincadeira de poeta. Para facilitar, o conteúdo é organizado por assuntos em ordem alfabética, tal qual um dicionário, então é perfeito para ter à mão como um livro de consulta, para quando você tem um tema perturbando a cabeça e pensa “O que o Drummond diria sobre isso?”. Foi num impulso desses que resolvi checar o que tinha lá sobre o coração.
“CORAÇÃO
O bom coração não sente que o é; se sentisse perderia a qualidade.”
Essa até que é bem profunda. Mas tem outros exemplos que demonstram melhor o que eu falei sobre o tom brincalhão.
“DOENTE
Chamar o doente de paciente é muito exagerado.IMPOSTO
O imposto tem esse nome porque, de outro modo, ninguém o pagaria.TOLSTÓI
Foi preciso que houvesse muita guerra para que Tolstói pudesse escrever Guerra e paz.”
E também tem outros muito poéticos, alguns com reflexões sociais interessantes, coisas que não vou ficar reproduzindo aqui para não cansar mais a sua leitura. Tal variedade, inclusive, é um ponto forte para um livro de consulta. Você pode ir procurar um assunto esperando um aforismo com A maiúsculo e acabar topando com uma piadola do Drummond, ou vice-versa.
Mas voltando ao coração dessa conversa, a última obra que eu queria mencionar é um samba do Jards Macalé, chamado Coração do Brasil. É uma das minhas favoritas dele e muito por conta da letra, que cito aqui na íntegra para você ler enquanto escuta a gravação.
“Coração
Ai, coração!”
ai coração!
ai coração!