Em 1938, a rádio americana CBS noticiou, como fazia com os acontecimentos do cotidiano, a invasão da terra por alienígenas. Imagina a confusão. Tratava-se de um programa de halloween dirigido por Orson Welles, que muitos ouvintes tomaram como verdade, causando um tremendo tumulto. A dramatização usava o texto de A Guerra dos Mundos, romance de H. G. Wells, de 1898.
Alguns anos antes de Wells publicar seu romance, em 1895, os Irmãos Lumière apresentaram A Chegada do Trem na Estação, um filmete de 50 segundos rodado no cinematógrafo que haviam inventado, e o povo saiu correndo ao avistar a locomotiva que se aproximava em alta velocidade. Ainda bem que agora, no século XXI, somos muito mais esclarecidos e não caímos nessas trapalhadas, não é verdade?
120 anos depois da invenção dos Lumière, assisti a O Ensaio me perguntando se entendia o que acontecia na minha TV. A premissa da série criada e estrelada por Nathan Fielder é relativamente simples: para ajudar pessoas que estão enfrentando dilemas em suas vidas, o apresentador as convida a ensaiar seus momentos mais decisivos, em um ambiente controlado, com atores contratados para simular as interações pessoais reais que as afligem.
O problema é que isso é só a primeira página. Logo no episódio de abertura já fica explícito que Fielder não vai respeitar nenhuma espécie de bom senso em sua cruzada contra o acaso. Cada mínimo detalhe das simulações tem que ser criado meticulosamente, cada variação possível do comportamento dos envolvidos tem que ser considerada e ensaiada. Cálculos computacionais e fluxogramas são utilizados para se certificar que todas possibilidades foram cobertas nos ensaios. Até que, lá pelas tantas, parece que o objeto do experimento é você.
O uso intercalado de cenas reais e de simulações com atores me lembrou do documentário Jogo de Cena, do mestre Eduardo Coutinho. Nesse filme de 2007, o diretor convidou mulheres anônimas a contarem suas histórias para as câmeras, e depois convidou atrizes para interpretar essas mulheres, para então fazer seu jogo com o que é real e o que é imitação.
Tem horas que não dá para saber se quem está ali falando está contando a própria história ou encenando a de outra pessoa, tem horas que não dá para saber se a atriz ainda está na personagem. Em algumas cenas, Coutinho acaba entregando o mistério, e dá a impressão de que para ele a maior diversão é mostrar que te enganou.
No começo dos anos 2000, quando foi concebido Jogo de Cena, muito se falava sobre a febre dos reality shows, ainda uma novidade na programação brasileira, sempre associados com a ideia de “ver as pessoas como elas são de verdade”. Coutinho, que então já tinha uns 50 anos trabalhando com documentário, sabia bem que realidade e narrativa são coisas muito mais delicadas do que ter ou não um script do que vai ser falado quando as câmeras forem ligadas. Nessa época as redes sociais ainda engatinhavam, e estávamos bastante distantes dos rios de dinheiro onde hoje boiam termos como metaverso, influenciadores e lives, que me parecem ser parte do combustível de Nathan Fielder para propor as vidas pré-praticadas de O Ensaio.
Há alguns paralelos curiosos entre as obras. Ambos diretores publicam anúncios vagos para encontrar quem queira participar de seus projetos. Uma das cobaias de Fielder quer ensaiar para ser mãe, enquanto praticamente todas as mulheres que se propõem a conversar com Coutinho tem a maternidade como base de suas histórias. Mas os assuntos centrais de cada produção são distintos.
Jogo de Cena tem um dos temas recorrentes de Coutinho, que é encontrar histórias fantásticas em anônimos. Além disso, trata do ofício da atuação em seus elementos mais fundamentais de concepção de personagem, impostação de fala, controle de emoções para dentro e para fora. O Ensaio tem como cerne o medo de perder o controle, a dificuldade de ser franco e o caminhão de problemas que a combinação dessas coisas traz.
Enquanto Coutinho desnuda vidas inteiras usando só duas cadeiras em um palco, Fielder usa o aparato da HBO para construir uma produção faraônica que a cada episódio só faz crescer exponencialmente, num paradoxo de se certificar que vai ser impossível ser levado a sério.
Escrever sobre O Ensaio é difícil porque a surpresa de assistir pela primeira vez é importante para a experiência da série. A primeira temporada tem seis episódios curtos, e acho que vale a pena ver todos eles, mesmo que nada faça muito sentido conforme você acompanha.
Assim como Jogo de Cena, a série é uma obra que dá uma coceira na cabeça, por ficar sempre te provocando a pensar sobre o que é verdade, fantasia, imaginação, paranoia, mentira. E sobre o que fazer com isso.
O texto da semana passada me rendeu bons papos sobre predileções incomuns e unanimidades. E naturalmente mais alguns reforços nas indicações do Sandman. Já até vi o primeiro episódio da série, achei bacana, quem sabe outra hora eu comente mais por aqui.
E para quem se interessou por conhecer mais, saiu uma entrevista enorme do Maurício Pereira no Scream & Yell.