Alô alô, testando. Você está lendo isso no seu e-mail? Então deve ter funcionado. E obrigado, também. O mundo se acabando e você tirando um tempo para ler e-mail meu.
A gente usa essa expressão pra falar da correria e confusão que tá a vida da gente, mas às vezes dá a impressão que o mundo tá acabando mesmo. Você tem se sentido assim? Acho improvável que alguém não tenha cogitado essa hipótese nos últimos 18 meses, desde que a pandemia trouxe esse ar de calamidade para a rotina de todo mundo. Desde março de 2020, não faltam superlativos para se referir a essa praga, seja a maior pandemia do século, o verdadeiro fim do Século XX ou qualquer outro que for mais do seu agrado. É sem dúvida uma ruptura na tal marcha dos acontecimentos.
Quem entrou há pouco na maioridade ou ainda é adolescente provavelmente vai passar o resto da vida contando para os mais jovens sobre como era a vida antes de todo mundo usar máscara, da mesma forma que a minha geração gosta de falar sobre como era o mundo quando você tinha a opção de entrar na internet e depois sair dela. Ou como gerações anteriores foram marcadas pela redemocratização do Brasil, pela instauração da ditadura militar, e assim por diante (ou assim por detrás, já que estávamos retrocedendo). Lembro de uma cena de Mad Men em que alguns personagens são associados com as guerras em que lutaram: Um está prestes a ir para o Vietnã, outro um pouco mais velho lutou na guerra da Coreia, e um terceiro foi soldado durante a segunda guerra mundial. Cada geração vai encontrando seus pontos chave na história e tendo eles como elemento em comum, que vão ajudando a formar o jeitão do seu ideário e do que ela produz, inclusive (talvez até principalmente) no campo cultural.
Umas semanas atrás calhou de eu acompanhar ao mesmo tempo duas narrativas distópicas, uma lançada na TV um pouco antes de existir covid-19, outra publicada em livro já neste ano de 2021. Me refiro à série Watchmen e ao livro O Deus das Avencas, do Daniel Galera.
A série, criada para a TV por Damon Lindelofe em 2019, imagina uma nova geração de justiceiros encapuzados, dando continuidade ao que se passa na HQ de Alan Moore e Dave Gibbons lá dos anos 80, aquela adaptada para o cinema por Zack Snyder em 2009. É claro que dessa vez o fantasma que ronda a humanidade não é mais a ameaça nuclear, como na época da publicação original, no auge da Guerra Fria. Agora as questões centrais envolvem privacidade, crimes de ódio (o Black Lives Matter já era gigantesco quando a série foi produzida) e a super concentração de renda, com uma personagem trilionária de ambições pouco republicanas.
Agora que vivemos à sombra da pandemia, assistir essa trama que fala tanto sobre máscaras foi - com o perdão da palavra - um bocado sufocante, e não só pelo ritmo alucinado dos episódios ou pela complexidade da narrativa, que tem um esquema intrincado conectando acontecimentos diversos ao longo de cem anos. É aquela coisa traiçoeira da ficção científica, de desenhar um universo mirabolante e imaginativo para no fim te fazer pensar mesmo no mundo real.
Com as três histórias d’O Deus das Avencas esse sentimento de estar presenciando a distopia acontecer logo ali ao lado foi mais forte ainda, especialmente na segunda novela do livro, Tóquio, que se passa num futuro não tão distante, bastando algumas doenças novas a mais e o colapso climático iminente para conceber um mundo inabitável.
Narrada em primeira pessoa com uma voz seca, talvez em uma apatia condizente com o que sobrou das cidades naquele momento, a história combina bem conflitos familiares, amores mal resolvidos e tentativas de conexão humana e digital. Passa rápido e deixa uma dúvida estranha e indigesta se aquilo é mesmo ficção ou apenas uma aposta segura do que nos aguarda em breve. Ler distopias enquanto o mundo acaba rende sempre a mesma pergunta: Será?
Há uma cena em Tóquio na qual uma personagem super rica e influente (empresária de tecnologia, tal qual a trilionária do Watchmen, de modo que na minha cabeça elas se misturam um pouco) passa um certo sermão em uma jovem ambientalista:
“O que você entende por mundo, Cristal? O mundo é o planeta Terra? Gaia? O universo? O fenômeno da vida? Ou será que o mundo é só o horizonte estreiro da experiência da sua cabecinha? Você precisa se atualizar. Não há um mundo a ser salvo. Mundo é o mais maleável dos conceitos. O mundo nada mais é do que o lugar do qual não podemos fugir. Você precisa identificar que lugar é esse e aprender a habitá-lo.”
Mais adiante, outra personagem, em uma situação mais desfavorável, inverte a lógica desse discurso, colocando não o mundo dentro da cabeça de cada um, mas sim o acúmulo das cabeças ao longo do tempo para resultar no mundo presente:
“As pessoas nos olham com pena, nos julgam responsáveis, como se tivéssemos nos manchado com essa busca por eternidade, como se não tivéssemos todos nós conspirado, bilhões de pessoas ao longo de milênios, pra chegar nesse fiasco.”
Em Watchmen, lá pelas tantas, alguém diz que se fizerem tal coisa “O mundo vai acabar”, e outra personagem responde:
“As pessoas vivem falando isso, mas parece que nunca acontece.”
E aí fico pensando que, assim como o egocentrismo de precisar ter sua própria grande ruptura para se sentir testemunha da história, não é se achar demais querer estar presente no fim dos tempos? Já não sobrevivemos, por exemplo, ao apocalipse supostamente previsto para 2012? O mesmo Daniel Galera trata em seu livro anterior, o ótimo romance Meia-noite e vinte, do pânico que pairava a virada do ano de 1999 para 2000, com o medo do bug do milênio enlouquecer todos nossos eletrônicos e nos mandar de volta para a idade da pedra ou coisa do tipo. E aqui estamos.
Falando nisso, já tomei minhas duas doses da vacina e parece que os números da covid no Brasil, apesar de ainda tenebrosos, vem melhorando. Estamos num mundo todo machucado e cheio de problemas para resolver, mas talvez decretar seu fim ainda seja precipitado. Tomara.