Segunda-feira de novo. Você passou bem o fim de semana? Eu arrisquei tomar umas cervejas na rua, pela primeira vez desde que começamos a ficar em casa. Fiz isso na Ria Livraria, um ponto de convergência do ambiente de bar com lindas prateleiras cheias de bons livros. Estou me abrindo à ideia de abertura e experimentando ver como me sinto nessas situações, já que com o avanço da vacinação estamos praticando a maior subversão possível contra o governo Bolsonaro: sobreviver.
Puxo esse assunto porque acho que é o principal mote da obra que quero abordar nesse e-mail, o disco Desta Estácio Blues, da Juçara Marçal. Se em seu álbum anterior, Encarnado (2014), ela abraçava a morte como tema central, agora é contra o reino da morte que a cantora se rebela, através de demonstrações de paixão, força e consciência.
Logo na faixa de abertura, “Vi de relance a coroa” (Siba Veloso), a imagem de um incêndio onde se vê a coroa de Reis Malunguinho, entidade presente em diversas religiões de matriz africana ou brasileira, mostra que o caminho aqui é duro e que atravessá-lo com alegria exige fé e disposição.
“Vinha tocando
Fogo no canavial
Subia do chão pra o céu
Uma fuligem de brilho tão real
Parecia a gente
Quando sai no carnaval”
Ainda em abordagem metafísica, a faixa título “Delta Estádio Blues“ (Rodrigo Campos / Juçara Marçal / Kiko Dinucci) imagina que a invenção do Blues por Robert Johnson no Delta do Mississipi teria sido bancada por um trato espiritual com Bide, Baiaco e Ismael Silva, membros da Turma do Estácio, que se reunia no começo do século passado no Rio de Janeiro para dar forma ao samba. Sem dúvida é uma lenda muito mais nobre do que a famosa versão em que Johnson teria vendido a alma ao demônio em troca de inspiração para suas canções. Velha demonização de um artista negro cuja obra era incontornável.
Já exercitando a disposição para não cair, as personagens de “Sem Cais” (Negro Leo / Juçara / Kiko), “Ladra” (Tulipa Ruiz) e “Crash” (Rodrigo Ogi) são a potência de resistir contra as estatísticas, a marginalidade e a inevitável violência pela qual nossas relações são mediadas, de forma literal ou alegórica.
O álbum é todo construído a partir de samples, colagens de som e sintetizadores. Recursos condizentes com a realidade de ter que se virar com o que tem à mão, recorrer a gambiarras, catar comida no lixo. Claro que Juçara poderia ter gravado com instrumentos tradicionais e a produção ruidosa é uma opção estética, também compreendida no tema da sobrevivência, já que é para experimentar que a gente segue vivendo. A paixão em “Baleia” (Maria Beraldo / Juçara / Kiko), o surrealismo em “La femme a barbe” (Brigitte Fontaine) e a pilantragem em “Oi, cat” (Tantão e Os Fita) são todas possibilidades de exploração que Juçara traduz em espetaculares performances vocais cheias de ecos, distorções e timbres malucos, até culminar no autotune da lírica “Lembranças que guardei” (Fernando Catatau / Juçara / Kiko), a que mais escancara o desejo de sobrevivência que guia o trabalho.
“aqui estou eu de novo
sentindo o coração
procurando respostas
ou uma sensação
que me traga de volta
lembranças que eu guardei
se realmente importam
que venham outra vez”
“Corpus Christi” (Douglas Germano / Juçara / Kiko) traz a resistência a um plano mais terreno ao retratar uma descida ao litoral paulista, tradicional programa suburbano de feriadão, tão essencial para lavar um pouco a alma e aguentar a vida no resto do ano. Não vão nos apagar enquanto a gente ainda tiver tesão de ir molhar o pé na praia quando dá tempo.
Na matéria que saiu na Folha sobre o lançamento de Delta Estácio Blues (leia aqui), consta que Juçara mantinha jornada dupla como rockstar e professora até 2015, quando já tinha lançado seu primeiro disco solo, dois com o Metá Metá e outros tantos em projetos variados. Era no “tempo livre” dos outros empregos que a arte tinha que dar um jeito de caber. Me lembrou um trecho de uma conversa do Leandro Ramos, o Julinho do Choque de Cultura, em um podcast, em que ele conta que também era funcionário CLT em horário comercial até 2018, e era no tempo que sobrava que desenvolvia a carreira artística que já bombava nas figurinhas de qualquer grupo de zap (assista aqui). Para sobreviver nessa sociedade também é preciso dinheiro, afinal de contas.
O disco encerra com “Iyalode Mbé Mbé” (Kiko / Juçara, adaptada de um Oriki, que é tipo um poema de louvor em Iorubá) e eu não sei o que diz a letra. Pelo jeito que Juçara canta, é um momento de serenidade após a peleja de sobreviver mais um dia.
Em uma das primeiras edições desses textos, falei sobre um livro do Ferréz. Essa semana ele é o convidado do Página Cinco, grande podcast sobre literatura do Rodrigo Casarin.
Me conta como você tá sobrevivendo. Seguimos.
Me arrisquei à cerveja na rua umas semanas antes, é uma experiência muito estranha, a ressaca moral do dia seguinte ser sobre o pouco uso de álcool em gel