Na quinta-feira, 19 de janeiro, a capa da Folha de São Paulo trazia a manchete “No foco de Lula, presença militar no Planalto é recorde”. A matéria que se seguia tratava de como a gestão Bolsonaro havia empanturrado o aparato federal de militares e como o novo governo Lula vem enxugando essa onipresença, que se tornou um tanto mais desconfortável depois do terrível último dia 8, quando as sedes dos três poderes da república foram invadidas e vilipendiadas por uma horda de cretinos a mando do candidato derrotado nas últimas eleições.
Tal tema foi ilustrado pelo jornal com uma imagem da fotógrafa Gabriela Biló, em que Lula aparece baixando levemente a cabeça enquanto ajeita a gravata e dá um discreto sorriso. Na altura de seu peito, se vê o trinco de um dos vidros vandalizados do patrimônio público de Brasília.
Acompanho o trabalho de Biló há algum tempo, até antes de ela trabalhar para a Folha, e sou bastante fã. Ouvi seu relato sobre os atos golpistas do dia 8 de janeiro, que ela cobriu in loco sob ameaças e agressões dos invasores; já vi entrevistas suas comentando sobre o machismo rotineiro que enfrenta no mundo político de Brasília e nos mundos da fotografia e do jornalismo como um todo; curti suas fotos de temas diversos que incluem a Copa do Mundo, a pandemia e seus retratos de artistas como Linn da Quebrada e Hermeto Paschoal. Talvez por conta disso eu tenha ficado tão surpreso e chateado com a repercussão da tal foto do Lula na capa da Folha.
Vi artistas que admiro dizendo que a foto era “criminosa” e chamando a fotógrafa de “canalha”, gente respeitada em seus meios querendo ordenar que ela tirasse a imagem do ar e uma ex-candidata do PT ao governo do Rio falando que a autora “deveria ser intimada a se explicar”. Teve até uma nota ridícula da Secretaria de Comunicação do Governo Federal dizendo o seguinte:
“É lamentável que o jornal Folha de S.Paulo tenha produzido e veiculado uma imagem não jornalística sugerindo violência contra o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, no contexto dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro. Trata-se de uma montagem, por não retratar nenhum momento que tenha acontecido.”
A foto foi feita com dupla exposição, ou seja, Biló fotografou o Lula e depois o vidro, em sequência, em um mesmo ambiente, em um dos poucos recursos criativos tolerados no universo do fotojornalismo. Será que uma foto em preto e branco vai ser considerada mentirosa pelo governo, tendo em vista que o mundo é colorido?
Tecnicidades à parte, não faltam imagens puras de Lula atrás de vidros estilhaçados, a exemplo da foto a seguir, de Eraldo Peres, da Associated Press. Quando a SeCom diz que tal momento não aconteceu, se comporta como aquelas anedóticas autocracias em que o Grande Líder deve sempre ser enquadrado de baixo para cima, que não se vira de costas para o magnânimo e bobagens do tipo.
Querer censurar o jornalismo ou a arte é uma imbecilidade óbvia. O fotojornalismo, talvez o ponto mais no meio do caminho entre as duas coisas, deveria ter dupla salvaguarda contra isso. A foto não é ofensiva a Lula nem traz nenhum discurso golpista. Pelo contrário: Mostra Lula tranquilo e num dos gestos mais tradicionalmente usados para ilustrar quem se prepara para seu próximo passo, alinhando a própria roupa. O presidente, é importante lembrar, fez questão de visitar os prédios vandalizados no mesmíssimo dia 8 de janeiro em que as invasões aconteceram, para ser visto naquele ambiente do qual tentaram enxotá-lo, numa demonstração de força.
Os atentados contra a democracia brasileira devem ser sempre lembrados, para entendermos o tamanho do trabalho que há para ser feito e quais são os limites do tolerável. Fingir que tais momentos não aconteceram é a mais completa loucura, e um sinal muito ruim do que pode vir a ser a SeCom do ministro Paulo Pimenta.
Lembro de Tropa de Elite e das interpretações conflitantes sobre qual seria a intenção de José Padilha com o filme, muitos debates e argumentos, ninguém dizendo que o filme devia ser recolhido ou proibido. Wagner Moura, que estrelou como Capitão Nascimento, só foi precisar lidar com esse tipo de palhaçada muito depois, quando dirigiu Marighella e foi alvo de perseguição da extrema-direita.
Voltando à foto de Gabriela Biló, vi também alguém dizendo que acha errado o fotojornalismo que trabalha com composições sugestivas, como o vidro quebrado sobrepondo Lula ou o quepe de um militar no fundo da foto enquadrado como e estivesse na cabeça de quem está em primeiro plano. Tudo bem ter suas preferências, mas fiquei pensando se há mesmo fotos que apenas capturem instantes de forma neutra. Obras visuais trazem consigo narrativas, mesmo que estas se criem na cabeça de quem vê. A gente cresce aprendendo que é muito legal o Michelangelo ter desenhado Deus em uns panos com formato de cérebro na Capela Sistina.
Fico com a impressão de que a dificuldade do povo brasileiro de encarar conflitos de modo a resolvê-los de fato - o que abarca desde a ideia de democracia racial até a anistia ampla e irrestrita pós ditadura de 64 - se reflete também na relação com a imprensa, em uma ambição inviável de ter um jornalismo essencialmente isento, como se não fosse realizado e consumido por pessoas.
Escrevo esse texto ainda na noite do dia 19, tentando descarregar um pouco a frustração de cair na real que algumas tosquices como querer mandar na interpretação alheia e levantar a voz para jornalistas mulheres não são exclusividade de um ou outro agrupamento político (ainda que, obviamente, o bolsonarismo seja muito pior em absolutamente qualquer critério). Vou deixar para publicar na segunda-feira 23 só para manter o ritmo semanal de edições deste Sinto Muito.
E para não dizer que não trouxe nenhum livro em mais essa semana, te lembro que a própria fotógrafa está com um título em pré-venda. A Verdade Vos Libertará sai em março pela Editora Fósforo.
“A partir dos protestos de julho de 2013, passando pelo impeachment de Dilma Rousseff e pelos descalabros do governo bolsonarista nos últimos 4 anos até chegar à sua derrota nas eleições de 2022, a obra propõe um olhar e uma experiência únicos que exploram esse período que ficará marcado na história do Brasil.”
Ficar lendo esse bate-boca ao longo do dia me desgastou a ponto de me lembrar que eu tinha planejado não usar o twitter esse ano. Meu plano durou uma semana e eu voltei a acompanhar as notícias por lá justamente por ocasião da tentativa de golpe, e agora já estava pronto para seguir na rede para acompanhar o Big Brother Brasil. Me serviu para retomar a ideia original, deslogar e apagar a senha do navegador. Como disse a Biló, por hoje chega.
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