Eu nasci na maternidade do Hospital São Cristóvão, ali na região da Mooca, Zona Leste de São Paulo. Cresci aqui e mesmo nos poucos anos em que estive mais afastado, fazendo faculdade no interior, vinha sempre para cá. Já morei em meia dúzia de imóveis diferentes, em quatro ou cinco bairros, e tenho bastante dificuldade de pensar em morar em outro lugar.
Ángela León nasceu em Madri, capital da Espanha, e morou quatro anos aqui, já adulta. Neste período, produziu mais de 100 desenhos e uma interpretação particular da cidade, materializada em seu Guia Fantástico de São Paulo.
“Agora você vai conhecer lugares onde poderá desfrutar mais do ar livre para relaxar, brincar ou até praticar esportes. (…) Mas tome cuidado, em São Paulo a chuva cai com a mesma força que crescem as árvores!”
Como se pode deduzir pelo título, o livro é estruturado como um guia turístico. Tem sugestões de lugares para visitar, tem um mapa dos bairros, informações sobre arquitetura local, tudo filtrado e ilustrado pelo olhar e os traços de Ángela. Sem nenhum compromisso utilitário, o que se sobressai são as escolhas afetivas da autora, ao destacar as orquídeas amarradas ao tronco de árvores nas calçadas ou as kombis transformadas em barracas de caldo de cana.
A segunda palavra do título tampouco é gratuita. Ao registrar o que mais a fascinou, León não se furta a imaginar o potencial dessa metrópole tropical. Há um lindo parque construído em cima e embaixo do Minhocão, piscinas públicas no subterrâneo da Avenida Paulista, um avião desativado transformado em atração em um também desativado Aeroporto de Congonhas. Até turismo fluvial.
“Durante o passeio, o barco faz várias paradas para pescar ou para nadar nas límpidas águas do Tietê.
Todo dia chegam, de barco, produtos frescos ao Mercado Municipal.”
Mas essa visão tão generosa da cidade também tem lá os seus lapsos. No fundo o livro é basicamente sobre o centro expandido, ignorando as tantas quebradas e seus encantamentos próprios. O transporte coletivo, por exemplo, só é retratado com os floreios de fantasia recém mencionados, talvez porque viver num município de mais de dez milhões de pessoas, às vezes, tenha ares de pesadelo.
Sobre nosso transporte sobre trilhos, muito mais pé no chão e pé na porta é o livro Vão, da poeta paulistana Jéssica Moreira. De Perus, a autora conhece a realidade das linhas que tem o nome e a dureza das pedras preciosas, e seu texto reflete bem o quanto essa rotina ocupa e impacta a cabeça dos passageiros. O consumo é no trem, com o shopping ambulante de comida e bugigangas tipo Polishop; a paquera é no trem, uma troca furtiva de olhares em meio à muvuca; a cultura é no trem, na mistura de embolada e stand-up dos marreteiros. O trem é o mundo, o vão é um buraco negro.
“Bolsa, celular. Uma pá de coisa na
mão. Equilíbrio nenhum dá conta. O
meu malabarismo chamou a atenção
duma mulher, que só estendeu a mão
e colocou a bolsa sobre as pernas
sentadas. Dentro de mim, a alegria dum
milagre. Só quem pega trem sabe.”
Este também é ilustrado, mas em vez de desenho traz fotos em preto e branco, com contraste alto, sombras duras e brilho metálico de ferro e aço. Não é o caso de inventar possibilidades mirabolantes, a realidade que se tem é essa e o desafio é encontrar beleza nesse microcosmo. Só o conceito de fazer um livro inteiro de poemas sobre a vivência nos carros da CPTM já é, de certa forma, uma ideia transgressora, um caminho para escapar do sufocamento da lotação nos horários de pico, uma forma de sair dos trilhos.
Todo mundo que frequenta o sistema ferroviário acumula histórias e visões curiosas, que podem passar batido na fadiga do dia a dia. Me lembro de quando eu baldeava diariamente em algumas dessas linhas e via com alguma frequência uma menininha que aparentava ter seis ou sete anos, de cabelos muito compridos, que tocava uma sanfona quase do seu tamanho e recolhia moedas ocasionais em troca de cada apresentação. Fico pensando o que Jéssica escreveria sobre ela.
“Estação Pirituba.
O maquinista, que mandava
um áudio no WhatsApp na
mesma hora da parada do
trem, emendou um é, agora
vai! O vagão todo caiu em
gargalhada. Depois voltaram,
gargalhadas cerradas
sentadas em banco duro.”
E assim como Jéssica encontra poesia na realidade esmagadora do vaivém ferroviário, Ángela também tem achados de mágica factual em seu guia. Os galpões fabris transformados em Sesc na Rua Clélia são mágicos. Sentar na grama do Parque Ibirapuera para ver uma orquestra executar ao vivo a trilha sonora de um filme centenário é mágico. Um passarinho que começa a cantar às três da madrugada achando que já é de manhã, de tanta luz acesa que tem na cidade mesmo no meio da noite, é um absurdo mas não deixa de ser meio fantástico também.
Mas minhas páginas favoritas do Guia Fantástico de São Paulo são as que tratam do Parque Augusta, porque quando o livro foi lançado essa era uma das provocações da cidade imaginada, um sonho talvez tão distante quanto o Tietê navegável, um entrevero jurídico entre construtoras, organizações de moradores e a própria prefeitura, sobre um terreno fechado há décadas entre a Rua Augusta e a Consolação, e hoje o parque está lá. Aos trancos e barrancos, cortando um dobrado e tendo cada vez mais e piores problemas para resolver, às vezes a minha cidade ainda faz algum truque de mágica.
É como cantava um cara que nasceu no interior do estado de SP e foi virar estátua de bronze lá na mesma Zona Leste em que eu cresci: “A cada mil lágrimas sai um milagre.”