Conforme a gente vai aprendendo a falar, tem palavras que acompanham a gente desde sempre o tempo todo. Tem outras que a gente aprende depois de adulto e aí meio que escolhe guardar, absorver pro nosso vocabulário pessoal. Uma dessas que eu aprendi depois de velho e gosto bastante é Egrégora. Catando aqui a definição de dicionário, esse substantivo feminino significa ”força espiritual que resulta da soma das energias mentais, físicas e emocionais proveniente de duas ou mais pessoas reunidas em grupo”. Foi esse conceito que ficou na minha cabeça depois de ler Elas Marchavam Sob o Sol, de Cristina Judar.
“Mortas podem ser as pessoas, mortas podem ser ideias e revoluções enterradas às pressas, antes que floresçam e mudem definitivamente a ordem das coisas. Mortas podem ser as mulheres, enterradas vivas pelo fato de não serem vistas, quando, de fato, elas são os planetas, as deidades, o fundo do mar. Tudo que é incontável ou impossível de se medir.”
É um texto que vai se formando de sobreposições. Os capítulos se alternam entre discursos de duas protagonistas, Ana e Joan, e diversos coadjuvantes. Alguém é mencionado em uma cena e ganha voz nas páginas seguintes para dar a sua versão. Uma espécie de plano e contraplano. Há ainda inserções de cartas, documentos, roteiros audiovisuais. Em certos pontos se utiliza até recursos visuais como variação de fontes e diagramação para destacar a diversidade estilística. Acho desnecessário, já que o texto sozinho dá conta disso, mas sei que agrada bastante gente.
Desde que comecei a escrever o Sinto Muito, tudo que vou ler é uma edição em potencial, o que interfere um pouco na minha leitura. Neste caso o efeito é dobrado, porque antes de conhecer o livro, conheci quem escreveu. Cris me deu aula no Clipe, curso de preparação de escritores, e é difícil ignorar isso. Vou lendo e prestando atenção em ritmos, frases de arremate, questões técnicas em geral que muitas vezes foram tema de suas lições e de outros professores. Na minha parca capacidade de julgar qualquer critério desses, tudo parece muito bem realizado e, que se pondere o viés por eu ter sido seu aluno, cada parágrafo da obra parece conscientemente posicionado.
Ainda em associações com o universo de cursos de escrita, o formato de capítulos breves e polifônicos me bateu de um jeito inesperado, porque depois de ter escrito dezenas e dezenas de textos curtos de tudo quanto é tipo em tudo quanto é aula, sempre me sobra a sensação de que me falta algo para criar um projeto maior, que seja bem estruturado e tudo mais. A pegada caleidoscópica de Elas Marchavam Sob o Sol - tão bem capturada no projeto gráfico de Luísa Zardo - demonstra como não é necessário soar extenso, rocambolesco ou pretensioso para entregar uma narrativa sólida.
“Os relógios de cuco e de badaladas são fantasmagóricos. Reza a lenda que há espíritos dentro deles: quanto mais velhos, mais fantasmas eles contêm, naturalmente atraídos pelo som, que, para eles, funciona como uma espécie de ímã. Minha avó era antiga quando parou de funcionar. A cada dia, uma peça dela se quebrava. Espíritos também a ocupavam.”
O livro começa com suas duas protagonistas “doze meses antes de completar dezoito anos” e os capítulos são distribuídos em doze blocos com nomes que vão de Janeiro a Dezembro. Entre o que há de recorrente ao longo da trama, personagens rodeadas por morte e sangue, não necessariamente como elementos negativos, mas sim indissociáveis da existência em corpos femininos, em contextos que variam de rituais mágicos a procedimentos cirúrgicos estéticos.
Judar é uma pessoa não-binária, e na minha procura talvez excessiva de pontos a falar sobre seu trabalho, saber disso também se refletiu em minha leitura. Não me refiro só aos momentos em que identidade e expressão de gênero são mencionados, obviamente. Também quando uma personagem escolhe um novo nome para si, quando o livro trata de perseguição política e opressões diversas, quando às vezes certas dualidades (matéria x espírito, delírio x realidade, ameaça x carícia) são sutilmente apresentadas como interações mais complexas.
“Há um cachorro que parece um urso. É o único deles que considero amigo. Ele tem a inocência de uma criança que nunca cresceu, é do tamanho de um homem alto, come algodão-doce colorido e arrota. Sempre me chama para ir ao parque. Toda vez que aceito o convite, surge à minha frente um redemoinho no centro de um pântano malcheiroso, então recuo.”
Temas e personagens múltiplos são elementos que compõem a tal da egrégora de que eu falei lá no começo. Vozes que perpassam a história e que a princípio dão aquela impressão de serem peças que precisarão se encaixar para fazerem sentido na história. Mas não. Sob o mesmo sol, para citar o título - e é lindo o trecho em que essas palavras aparecem no romance - elas já estão conectadas, ligadas por algo difuso que justifica cada uma em função de todas.