Pelas expectativas frustradas - Sinto Muito #19
De onde você menos espera eu não posso garantir que vá sair alguma coisa.
Semana vai, semana vem, e você nunca sabe se vai ter texto ou não. A coisa já saiu um tanto do controle e se você está, como eu, precisando de mais regularidade na vida... sinto muito. Mas vamos, pelo menos, tentar fazer uma transição lógica do e-mail anterior para este aqui.
Da última vez que nos falamos, o tema foi Marighella, o homem, a biografia e como eles me impactaram. Um reflexo ainda não mencionado disso foi a vontade que me deu de ler Jorge Amado. Explico: No final do livro há um índice remissivo apontando em quais páginas cada pessoa da história é citada, e Amado é um dos nomes mais recorrentes. Conterrâneo e grande amigo de Marighella, o autor aparece diversas vezes contribuindo com a revolução e com as questões do coração do guerrilheiro. Quando os restos mortais do líder comunista são enfim levados à Bahia, dez anos depois de seu assassinato pelo Estado brasileiro, cabe ao amigo escritor redigir seu epitáfio.
“Atravessaste a interminável noite da mentira e do medo, da desrazão e da infâmia e desembarcas na aurora da Bahia, trazido em mãos de amor e de amizade. Aqui estás e todos te reconhecem como foste e serás para sempre: incorruptível brasileiro, um moço baiano de riso jovial e coração ardente. Aqui estás entre teus amigos e entre os que são tua carne e teu sangue.”
Então, instigado por suas conexões com a luta revolucionária, fui finalmente ler este que foi um dos maiores autores da língua portuguesa. Escolhi um romance do qual nunca tinha ouvido falar, A Descoberta da América Pelos Turcos. Naturalmente, quebrei a cara.
Primeiro que os turcos do título não são sequer turcos, e sim sírios e libaneses cuja documentação de imigração vinha carimbada pelo império turco otomano, conforme explicado no primeiro parágrafo do romance.
Segundo porque a linguagem de Amado não poderia ser mais distante do esperado de um autor canônico, esbanjando baixaria e esculacho. Digo isso sem juízo de valor, apenas para destacar como foi inesperado para mim. Eu conhecia as tramas de obras célebres como Dona Flor e Seus Dois Maridos e Tieta do Agreste, mas não contava com um texto tão pontiagudo.
“Irmã caçula, cabrocha viçosa e assanhada, dera o cabaço de regalo ao filho do juiz, filho-da-puta que lhe tendo feito a festa a largou mal fodida à fúria do pai bêbado e moralista, sem lhe dizer até-logo: prometera casa posta, amigação. De qualquer maneira era-lhe grata, ao lhe tirar os tampos ele lhe proporcionara a sorte grande: Glorinha do Divino veio ser puta na zona do cacau, Glorinha Cu de Ouro, afreguesada.”
Claro que isso é proposital e por opção, assim como o retrato escrachado da hipocrisia e moralismo da sociedade brasileira do século XX não lhe serve de endosso. É uma constatação meio óbvia mas não desnecessária, considerando o quanto o pessoal tem sofrido ultimamente para dissociar autor de narrador e até de personagens específicos. Personagens que inclusive são outra idiossincrasia de seu estilo. Enquanto muitos manuais de escrita recomendam que se foque sempre em um protagonista ou num grupo central que conduza a história, Jorge Amado faz longas digressões para fofocar sobre figuras que pouco tem a ver com o relato principal, mesmo em um livro curto como A Descoberta da América Pelos Turcos. Outro recurso que assustaria alguém muito bitolado em oficinas de escrita criativa é a profusão de adjetivos, essas palavrinhas tão demonizadas e que surgem tão bem distribuídas por seu texto. Quando quer, ostenta até um vocabulário sofisticado, só para sacanear.
“Postada na janela, Adma, boca do inferno, despejava injúrias, acusações, agravos, ameaças sobre o pai, o cirineu e as madalenas. Valia a pena ver e ouvir: uma única vez Raduan Murad testemunhara o espetáculo e para classificá-lo empregou palavras pouco usuais: catilinária, vesânia, atrabílis.”
Essa segurança com o estilo não é por acaso, este é um livro, digamos, da fase madura e consagrada do baiano (se não me enganei nas contas, foi de fato o último romance publicado em vida pelo autor, em 1992), um “romancinho” escrito por encomenda de uma estatal italiana e concebido a partir de uma ideia que sobrou da elaboração de seu romance Tocaia Grande, segundo explicação do próprio no divertido prefácio da edição, que também traz um simpático material de arquivo, com fotos dele na Turquia, capas de edições internacionais do romance e imagens de alguns manuscritos.
Às vezes, no ímpeto de falar de coisas muito importantes e com ambição de ser ouvido, a gente pode cair numa sisudez desnecessária. Vira e mexe quando eu estou revisando esses e-mails eu preciso cortar ou reescrever algumas partes que de primeira saem pomposas demais, meio ridículo. Lembrar que Jorge Amado, que Saramago dizia ser um injustiçado pela turma do Prêmio Nobel, escrevia de forma debochada e sorria diante da máquina de escrever, ao mesmo tempo que lutava por seus ideais tanto pela via institucional quanto por caminhos alternativos, é uma provocação indispensável para quem tem, como diz um outro baiano brilhante, essa preocupação de parecer tão sério.