Se você está lendo estas palavras é porque resolveu abrir o e-mail em que elas chegaram ou então acessar o site onde elas ficam arquivadas, uma escolha para saber o que estaria sendo falado no texto. Há muitos estudos por aí que tentam calcular com que frequência precisamos decidir alguma coisa, com resultados que chegam a casa das dezenas de milhares de decisões diariamente por pessoa.
Agora imagine que cada escolha dessa não elimina as opções descartadas, e sim cria universos paralelos em que foi tomada cada decisão possível. Essa é uma das premissas de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, filme que estreou no Brasil recentemente e vem causando frisson na internet - pelo menos na minha bolha. Pude assistir a uma sessão na última semana e fiquei encantado com a capacidade dos diretores xarás Daniel Kwan e Daniel Scheinert de entregarem, em duas horas e pouco, exatamente o que o pretensioso título promete.
O filme tem ritmo galopante, tanto na trama que encadeia uma reviravolta atrás da outra quanto no visual de fotografia, maquiagem, figurino e edição estonteantes. É tudo muito intenso e é tudo muito rápido, e muitas vezes a protagonista Evelyn (Michelle Yeoh) encara a câmera como que provocando os expectadores: Não é disso que vocês gostam?
Em seu liquidificador cinematográfico, os Daniels misturam Matrix, Tarantino, super-heróis, comédia, drama e tudo o mais, para tatear até onde pode ir uma trama baseada na ideia de multiverso, tendência que já vem se tornando um gênero por si só, alavancado pelos blockbusters da Marvel e séries como Stranger Things e Dark.
Já eu, para falar por aqui sobre Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, achei por bem acrescentar algo a mais na mistura, e aproveitei para fazer uma nova leitura de um autor que eu sentia que ia combinar com esse papo, o Manoel Carlos Karam. Dele eu já havia lido os ótimos Cebola e Pescoço Ladeado por Parafusos, e o que estava na minha fila no momento era Algum Tempo Depois, que no nome já soa um pouco complementar ao filme.
“…o pneu dianteiro direito passou sobre algo, mesmo com os vidros do carro fechados eu ouvi o ruído de uma garrafa de plástico, talvez não fosse, escolhi manter como verdade a impressão que tive, se um dia contasse o que aconteceu diria que havia sido uma garrafa de plástico.”
O protagonista conta a história de forma muito particular, discutindo consigo mesmo, mudando de ideia, associando elementos que à primeira vista não tem ligação e abusando de repetições (às vezes parágrafos inteiros se repetem em mais de um ponto do livro). Entre suas idas e vindas entre casa e escritório, vamos conhecendo aos poucos suas funções profissionais, sua rotina com a esposa que está sempre viajando, seus hobbies que ficam sempre só em fase de projeto.
É coincidência que o personagem de Karam fale de escolhas e use o processo de lembrar e contar os seus dias como uma forma de criar realidades paralelas (há cenas que se repetem contadas com algumas mudanças), mas o ponto principal que eu sabia que ia ter a ver com Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo é a maneira como nenhuma das obras se leva a sério, mesmo quando demonstram controlar a estética para atingir o sublime ou quando tratam de temas profundos, logo apresentam alguma cena esdrúxula para não dispersar do faz-de-conta principal. Como dito por uma personagem do filme: no fundo, não tem importância.
“…achei curioso ter pensado na minha mulher somente depois de buscar outras alternativas, aquilo talvez tenha sido o que me levou a tomar a decisão de sair do carro e pensar na saída para o problema fora dele, dentro da chuva.”
A certa altura de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, a protagonista é aconselhada a não confiar em ninguém, e essa dica me acompanhou pelo resto da sessão, enquanto cada cena que acontecia parecia querer me tapear, às vezes até conseguindo. Em Algum Tempo Depois, a única verdade que temos é a narração em primeira pessoa, que anuncia logo de cara que ajusta sua memória deliberadamente, além de ser demonstrada como não confiável por uma série de detalhes que não me convém mencionar.
Ao mesmo tempo, o filme pode muito bem ser lido como uma baita alegoria sobre neurodivergências como TDAH e depressão; ou então simplesmente sobre maternidade; ou como uma linda ode à gentileza e empatia. O livro ridiculariza o mercado de trabalho selvagem, o marketing inescrupuloso numa economia decadente; reflete sobre nossa construção de personas para atravessar as rotinas íntimas e públicas; simula um monólogo interior com habilidade rara.
Para o que eu espero de um bom entretenimento, ambos são divertidíssimos quebra-cabeças em que tudo acaba por se encaixar, pra no fim você notar que vieram com algumas peças faltando. E aí rir de si mesmo.
Adorei o texto e me interessei (bastante) pelas obras trabalhadas. Desconhecia ambas.