Dizem que a única certeza que a gente tem na vida é a morte. Por outro lado, o que sucede a morte é a maior dúvida da humanidade. Existem respostas, é claro: do ponto de vista químico e biológico os legistas podem explicar detalhadamente; já no plano metafísico há algumas hipóteses mais recorrentes, normalmente associadas a religiões. No Brasil, pela hegemonia do cristianismo, se deduz que a maioria das pessoas espera que a gente acabe indo pro paraíso ou pro inferno, mas já te ocorreu a possibilidade de ser uma questão de escolha? De que, acabado seu tempo no plano terreno, você vá pra uma espécie de repartição pública em que alguém te pergunta se prefere céu, inferno ou purgatório? Pois é, eu também nunca tinha pensado nisso, e é essa a premissa do primeiro conto de Cães Noturnos, de Ivan Nery Cardoso.
O volume é dividido em duas partes com dez contos cada, marcados sempre pelo inusitado de suas sinopses. A estranheza pode despertar o riso, o constrangimento, o nojo por algumas descrições grotescas que aparecem de repente. Para sintetizar, pode se classificar essa coleção de contos como ficção fantástica, mas há uma heterogeneidade dos textos que é uma de suas grandes qualidades. O estilo trafega pelo suspense, ficção científica, sátira, sempre com algum cinismo realista. Um todo maior que a soma das partes, como se diz. Naturalmente, muitas vezes as tramas narradas sugerem ser alusões a temas maiores do que o descrito diretamente, aproveitando fatores externos para lembrar dos monstros de cada um de nós.
“Dentro de casa, dentro do armário, soava como uma alcateia passando pela rua, indo e vindo. Uivavam mesmo, rosnavam, gritos de bicho-fera. Batiam nas janelas, arranhavam as portas, parecia que iam derrubar, e era a única noite em que homem podia chorar. Minhas irmãs podiam chorar quando bem entendessem, mas eu tinha que aproveitar essas noites para soltar todo o choro guardado. Soluçava, gemia e esperneava, para segurar melhor até a próxima lua cheia.”
Como me apontou o próprio Ivan em um papo sobre o livro, é possível notar que mais de um conto pode tratar de um mesmo tema, chegando nele por caminhos completamente distintos e ressaltando nele aspectos diferentes. Por exemplo, a história de uma influencer viajando a Marte e outra sobre um povo pequenino que vive dentro de um piano podem dialogar a respeito das condições precarizadas de trabalho com que convivemos atualmente e sobre a implacável desumanização a que os trabalhadores são submetidos.
E há o horror. Transmutações, monstros, sangue jorrando na cara do leitor. Muitas vezes chocante pela forma banal como é descrito pelos narradores e personagens, ainda mais assustador à medida que se aproxima do nosso cotidiano. Quando lemos fantasia, a realidade está sempre à espreita. O autor vai muito bem em descrever o insólito que há também nos sentimentos que temos ao interagir com outras pessoas, e também conosco mesmo.
“Na hora do recreio, a turma se dividia em dois times para, como bons brasileiros, jogar futebol. Não por falta ou excesso de jogadores em um dos times, mas por vontade própria, eu logo escolhia minha posição favorita em campo: o placar. Creio que daí já é possível tirar algumas conclusões sobre a minha personalidade.”
Alguma familiaridade, mesmo com algo negativo, pode ser reconfortante, já que o medo, via de regra, vem do desconhecido. Provocações inventivas assim funcionam por nos deixar em alerta: O que existe para além do que a gente sabe? Dos contos de Cães Noturnos, o que mais ressoou com meus medos foi um chamado “Bons Sonhos”. Para contar sem spoilers, digo só que se trata de uma pessoa que fica obcecada por um desconhecido a ponto de se achar no direito de exigir que ele se comporte de determinada maneira. Me fascina de um modo bastante perturbador pensar que a mente dos outros é uma caixa preta, que há bilhões de pessoas no mundo e cada um tem um universo dentro da própria cabeça que eu não faço ideia se funciona parecido com o meu, e o mais provável é que não.
Bem a tempo de eu falar disso, saiu um episódio do podcast Rádio Novelo Apresenta que traz histórias sobre as particularidades da consciência alheia e de como o perigo pode morar neste desconhecido inacessível que nos rodeia o tempo todo. Tirando Sartre do contexto, às vezes o inferno são mesmo os outros.
“’Te vi no Tinder, amiga’. Foi assim que começou uma saga que durou 6 anos. Não de um casal unido pelo aplicativo de relacionamentos, mas de um pesadelo.”
Trecho da descrição do episódio “Carteira de Identidade”, do Rádio Novelo Apresenta.
Achei válido relacionar essas duas obras aqui porque vejo que se complementam de um jeito curioso. Enquanto o podcast se dedica, não só neste episódio, a histórias que parecem incríveis demais para serem reais, os contos de Cães Noturnos batem no leitor com dores e dilemas reais demais para serem só especulação. Ainda que se valha de boas descrições visuais em diversas histórias, o livro dá aquela sensação de obra que não seria facilmente adaptada a outras linguagens, por contar com o que acontece entre a leitura das palavras e a compreensão do texto, aquele outro desconhecido que ativa pontos certeiros em cada mente que acessa. O desconhecido próprio da literatura.
Cara, muito feliz com a sua leitura de Cães Noturnos! É exatamente isso: o que acontece na cabeça do outro é tão alheio à gente que se torna literatura fantástica, insólita.