“Nunca pensei que eu veria e vi no jornal, mas não cola
Carcará na gaiola sem fazer o que faria
Tá preso, mas eu queria saber por que foi trancado
Perguntei desconfiado, disseram com má vontade
Aquele ali na verdade nem era pra ter voado”
…
Assim o pernambucano Siba abre a letra de “Carcará de Gaiola”, última canção de seu disco Coruja Muda, lançado em 2019, quando o ex-presidente da república Luiz Inácio Lula da Silva se encontrava detido na carceragem da Polícia Federal em Curitiba, desde o ano anterior.
A detenção de Lula é como Fernando Morais começa Lula : Biografia : Volume 1. Do longo fim de semana entre o despacho do então juiz Sérgio Moro e a execução da prisão, temos acesso a bastidores de como se deu o embate entre quem defendia que Lula se entregasse e quem insistia que já era hora de peitar a Lava-Jato e desafiar a polícia a invadir o sindicato, onde a comitiva do presidente estava aquartelada, cercada por milhares de militantes. No fim das contas negociou-se um meio termo, com Lula aguardando a PF no sindicato, sem tentativa de resistência.
Do período em que esteve privado da liberdade, vemos a repercussão nacional e estrangeira sobre o caso, o desmascaramento da força tarefa com a invasão dos celulares de procuradores, até a saída do prisioneiro pela porta da frente do prédio, desde sua primeira noite de cárcere:
“Exausto com o estresse dos últimos dias, o ex-presidente recusou os sanduíches que lhe ofereceu um carcereiro, tirou apenas o paletó e os sapatos, e nem chegou a desfazer a mala. Como costuma fazer sempre que dorme em algum ambiente desconhecido, Lula não apagou as luzes, mas ao deitar cobriu os olhos com uma dessas vendas utilizadas em voos noturnos. Assim, diz ele, se durante a noite quiser ir ao banheiro ou tomar água, evita o risco de sair no escuro, à cata de interruptores, e tropeçar em móveis e objetos.
Não rezou, não praguejou, não xingou ninguém. Desabou na cama e dormiu tranquilo, sem precisar recorrer a soníferos.
Adormeceu com a certeza de que, fosse por razões políticas ou jurídicas, em uma semana, dez dias, no máximo, estaria em liberdade.”
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”E eu perguntei como assim, o que seu bico rasgou
Ou sua garra arranhou algum pet no jardim
O que ele fez de ruim? A quem ele incomodou?
Ou foi o Sol que aumentou a sombra da sua asa
Se foi assim, em qual casa sua sombra assombrou?”
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Das primeiras vezes que ouvi falar da Biografia, fiquei confuso sobre a indicação de “Volume 1” em seu título, já que sabia que o livro cobria o período da prisão. Assim não sobrariam apenas dois anos de assunto para um próximo volume?
O caso é que, como já mencionei, o texto biográfico é precedido por uma longa reportagem sobre a estadia em Curitiba; depois um breve relato da sua prisão anterior, em 1980, quando Lula ainda era líder sindical e o Brasil ainda amargava a ditadura militar começada em 1964; e só então começa a contar a vida do biografado em ordem cronológica, a migração para o sul na infância, a formação no Senai, os casamentos, os lutos, o sindicato, a política. O livro vai até o momento em que Lula é eleito deputado em 1986, o mais votado entre os quase 500 parlamentares que seriam responsáveis por redigir a Constituição Cidadã. Ou seja, para o próximo tomo ainda temos três campanhas presidenciais fracassadas e quatro mandatos presidenciais do PT, sendo o último interrompido por um processo de impeachment. Fora todo resto que aconteceu desde 1987, ano em que eu nasci.
Quanto mais próximos os fatos contados, mais interessante é a leitura. Nos capítulos que trata da infância do menino Luiz, Morais dá uma exagerada em destacar a honestidade dos Silva quando viviam na penúria, como que para deixar claro que se o filho da Dona Lindu era incapaz de roubar um chiclete da venda da esquina quando passava fome, não seria o consagrado líder global Lula que iria se corromper por um par de pedalinhos. Didático e compreensível dado o contexto de escrita da obra, mas um pouco enfadonho de se ler.
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”Como será que controla sua força e energia
Vivendo de noite a dia trancado numa gaiola
Feita de arame, de mola, talisca, madeira e lata
E ouvindo a turma gaiata dizendo na cara dura
Você preso a gente atura e você solto a gente mata”
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E se não dei muita bola para a formação pessoal de Luiz Inácio, suas aventuras de criança e seus romances da adolescência, o livro me serviu uma visão esquematizada da ascensão da figura de Lula como protagonista do “novo sindicalismo” no fim dos anos 70, da relevância do movimento grevista Brasil afora, da fundação do PT e da criação da CUT.
“Segundo a lei, nos programas eleitorais de televisão aparecia apenas a foto do candidato (fosse a governador ou a vereador) e um locutor, em poucos segundos, lia em off um resumo telegráfico da biografia do pretendente ao cargo. Como o propósito do mote imaginado para as campanhas do PT era avançar e buscar votos nas classes sociais mais populares, após a minibiografia de cada candidato o locutor anunciava: ‘Um brasileiro igualzinho a você’. Ocorre que, como muitos dos candidatos tinham vindo da luta armada, com pesadas condenações na biografia, não era incomum que a foto fosse ilustrada com textos do tipo: ‘Fulano de tal, ex-membro da guerrilha urbana, condenado a cinquenta anos de prisão. Um brasileiro igualzinho a você’.”
Ainda em 2018, quando o Brasil ainda se acostumava com a ideia de ter atrás das grades um ex-presidente eleito duas vezes por voto popular, os poetas Ademir Assunção e Marcelino Freire não tiveram medo de levar um jogo de palavras às últimas consequências. A partir do bordão que já se popularizava entre os críticos da condenação, convidaram uma constelação da cena cultural brasileira e organizaram Lulalivre : Lulalivro, coletânea-manifesto que chamou mais atenção pelo happening do que pelo conteúdo propriamente dito, ainda que tenha contribuições excelentes de escritoras, artistas e personalidades em geral.
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”Os homens que lhe prenderam lhe venderam por trocados
São como ratos molhados que na fartura cresceram
Comemoram que venceram mas dormem mal de pensar
Se ele um dia se soltar que força ainda vai ter
O que vai querer fazer e pra que lado vai voar”
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Mas entre Andréa Del Fuego, Joca Reiners Terron, Alice Ruiz, Chacal, Aldir Blanc, Ferréz, Roberta Estrela D’Alva, Augusto de Campos e outras dezenas, destacam-se em Lulalivro aqueles que aparecem também em momentos marcantes de Lula : Biografia.
Chico Buarque, que em 1980 ajudou a bancar uma serralheria criada para empregar os sindicalistas que foram demitidos de seus empregos após ficarem um mês detidos pelos militares (incluindo Lula), aparece fazendo fofoca de FHC para refletir sobre preconceito de classe e a escalada da violência política.
Laerte, que aos vinte anos criou o personagem João Ferrador para ilustrar tirinhas de panfletos do sindicato dos metalúrgicos nos anos 70, apresenta uma página em seu estilo inconfundível sobre como enfrentar o ódio que contaminou o cotidiano brasileiro.
Frei Betto, próximo de Lula a ponto de estar dormindo em sua casa quando o então sindicalista foi preso em 1980, usa seu espaço na coletânea para publicar uma carta à juíza Carolina Lebbos, responsável pela custódia de Lula na PF, pedindo para visitar o amigo.
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”Olhando o tempo passar carcará soa e não caça
Mas eu sei que o tempo passa e o dia há de chegar
De alguém vir me avisar carcará mandou recado
Está mais velho e mais cansado e a voz mais rouca e mais feio
Saiu pra dar um passeio, tá todo mundo assombrado”
Algumas das minhas primeiras lembranças da vida envolvem o Lula. Meu pai foi torneiro mecânico em São Bernardo do Campo por muitos anos, período em que também militava pelo PT. De dois em dois anos, quando circulava pra lá e pra cá com adesivos e bandeiras vermelhas no carro, de cabelo preto e barba cheia, não era raro que alguém apontasse para ele na rua e dissesse: “Olha o Lula!”
Antes de eu poder votar, já era acostumado a panfletar para o PT nas eleições. Em 2002, ainda sem idade para tirar o título, não pude contribuir diretamente no sufrágio, mas ia para a escola levando na camisa do uniforme um broche de estrela vermelha, que hoje talvez eu tivesse medo de usar. E não pude deixar de calcular que, quando foi preso pela primeira vez, Lula tinha a idade que tenho hoje.
Vinte anos depois de sua primeira vitória presidencial, dessa vez vou poder votar para que ele assuma novamente o Planalto. Lula carrega contradições inevitáveis depois de quase cinco décadas no centro do debate político de um país desse tamanho, não é uma pessoa perfeita, mas nossa melhor cartada para aglutinar o máximo de força disponível contra o lixo que tomou o país de assalto. E, por que não dizer, para ver se conclui sua epopeia de uma maneira mais justa que em uma cela de prisão.
Desde que foi preso na lava-jato mais recente, ele gosta de dizer que é uma ideia. Pretensioso pra chuchu, mas de certa forma adequado, para um cara de quem todo mundo sabe, em algum nível, fazer uma imitação. Que já foi assunto de algum almoço de domingo de qualquer família do Brasil. É difícil sumarizar Lula, por isso recorro aos versos da sempre brilhante Noemi Jaffe, também extraídos do Lulalivro:
“Um rasgo elétrico na superfície lisa
Uma manada de búfalos numa estrada vicinal
Uma pinta ruiva nas costas brancas
O cheiro de pimenta brava ardendo nos olhos
O toque áspero da malha usada
O risco do travessão imprevisto
Uma metáfora que pouca gente entendeu
Uma ventoinha girando desgovernada
O trem assobiando fino na madrugada
O pão quente recém-mordido
O lençol engomado, cheirando a passado
A bolacha no pacote fechado
As favas da vagem quase abrindo
Os olhos de ressaca no domingo de manhã
O apito do árbitro iniciando a partida
A conversa com a vizinha da casa ao lado
O ônibus lotado; o cobrador organizando o espaço
O banho merecido
O café na xícara; a xícara no pires.Lula está livre.”