Desde 2019, com o início do mandato de Bolsonaro, vi pipocar por aí uma sugestão recorrente de leitura, elegendo um clássico brasileiro do século XX como boa leitura para os tempos sombrios que nos aguardavam. É bem verdade que lá nos primeiros meses ninguém tinha dimensão exata da lama que viria, mas mesmo que tenhamos sido surpreendidos com tragédias inimagináveis, Não Verás País Nenhum ainda é a perfeita distopia de cabeceira para o que estamos atravessando.
“Não respondeu, foi dar ordens. Se é que havia ordens a dar. Mas Militecnos adoram lideranças, comandos, se julgam logísticos, estrategistas. Mesmo que seja dentro de um apartamento, numa faxina, mudança. São capazes de comandar uma ida ao banheiro, o puxar da descarga.”
Sinceramente, se eu encontro uma frase como “Militecnos [...] se julgam logísticos” em um livro de 2022 eu vou achar que falta sutileza, que é colado demais na realidade. Só que Ignácio de Loyola Brandão publicou isso aí em 1981.
Tudo bem, a leitura é sempre enviesada pelo contexto do leitor, e nossa história tende a tropeçar várias vezes nos mesmos buracos, mas mesmo assim é chocante o teor premonitório sobre como “ministros tinham interesses nas multi-indústrias alimentícias”, ou como “O que existia era uma porção de esquerdas contra uma direita.” Ou ainda sobre a experiência de rever a cidade depois de muito tempo sem poder circular livremente:
“Redescubro São Paulo. Não a minha. Minha. Que ridículo. Como se eu tivesse alguma. Ao dizer minha, prendo-me ao passado, refugio-me no inexistente. Caio no vácuo, daí a insegurança. Encontro uma nova cidade, estranha, que apresenta a todo instante novas propostas de vida. Ela continuou, eu parei.”
Não há uma data exata situando a narrativa. O que se pode deduzir é que tudo se passa algumas décadas depois dos “Abertos Oitenta”, um dos inúmeros nomes próprios que batizam recortes temporais, agrupamentos de pessoas, regiões da cidade e do mundo, sempre de forma bastante cínica. No futuro imaginado por Loyola, o cinismo venceu e o governo se chama “Esquema”. Falta liberdade, falta emprego, falta água. O romance é pouco e os parágrafos são curtos, como tudo em tempos de escassez. Há poucas fontes de otimismo e algumas delas são ceifadas brutal e repentinamente. Para um livro que nasceu quando o Brasil amargava vinte anos de ditadura militar, é compreensível o tom de desesperança que cobre a maior parte do texto.
Num salto direto para o presente, a postura de Don L em seu Roteiro para Aïnouz Vol.2 é bastante diferente. O cenário é parecido: terra arrasada, soldados rondando as ruas, povo entregue à própria sorte. Mas o prognóstico é outro: Ação, revolta, sem tempo para esperar. Em vez de projetar o olhar para o futuro e desenhar uma atualização para a distopia, o rapper cria uma realidade paralela em que o povo - hoje - tomou o poder com as mãos e todos os recursos disponíveis, das pistolas às paixões.
"A gente é mutirão em dias ruins
Bailão em dias bons
A gente é trabalho e faculdade
Eles são coach de virgindade em meia idadeA gente é justiça, eles polícia
Marielle vive, eles milícia
A gente é milícia também
só que zapatista (vamo que vamo, porra!)”
Em Não Verás País Nenhum, diversas doenças infestam as metrópoles, de modo que sintomas como descamação cutânea e deformações variadas se tornam quase corriqueiros. Souza, o narrador protagonista, é acometido por um furo no meio da mão, que surge de repente sem lhe causar nenhuma dor, apenas um certo constrangimento que o leva a ficar mais tempo com as mãos nos bolsos. Pelo estilo debochado de Loyola e a relação desse furo com outros pontos da estória, não acho exagero associá-lo com a expressão estar com o cu na mão, que se diz de quem tem muito medo. Em Roteiro Para Aïnouz Vol.2, a regra é o inverso:
“Guerrilha urbana
guerra santa
uma delegacia em chamas
[...]
Pânico de nada
eles sangram como eu sangro
Pânico de nada
vai ser como quiser Xangô”
40 anos separam as duas obras, período que abarca a redemocratização brasileira, transformações sociais, tecnológicas e culturais, até a volta dos militares ao poder, agora em um processo democrático (ao menos segundo os registros oficiais). O que o livro e o disco tem em comum são pontos de partida muito ruins e a necessidade de imaginar. Imaginar no que vai dar se continuar assim, como Loyola fez tragicamente bem, ou o que falta para outra realidade, como agora faz Don L.
E aí, como é que vai o seu Brasil? Esse assunto deve continuar por aqui nas próximas semanas, quem sabe até pelo ano todo, já que 2022 é daqueles anos em que a bandeira nacional vai estar em todo lugar. É um pouco cansativo mas a gente precisa.
Até a próxima,