Estou raptando uma criança. A primeira sentença de Suíte Tóquio, com quatro breves palavras, é o suficiente para capturar a atenção de quem abre o livro por curiosidade, e eu a reproduzo no começo deste texto para ver se também me aproprio um pouco do impacto.
Sem medo de mostrar suas cartas, a autora Giovana Madalosso entrega o plot principal ainda nos primeiros parágrafos. Com cinco páginas lidas, já conhecemos a estrutura da obra, contada por duas narradoras em capítulos intercalados. Na página 27 entendemos o que representa na história o intrigante título. Daí para frente a trama segue despertando interesse, tem lá seus mistérios e reviravoltas, mas a leitura passa a ser muito mais um ato de acompanhar as narradoras de perto, conhecendo seus passados e os segredos que guardam uma da outra e do mundo.
“Já levemente bêbada, deitada no tapete da sala, ouço meu marido conversando com mulheres de quem nunca ouvi falar, sobre crianças de quem nunca ouvi falar e sobre episódios que eu não faço ideia que tenham acontecido, como um surto de piolhos. Enquanto ele fala com a mãe de uma tal de Bebel, fico pensando o que aconteceu comigo para eu me tornar uma turista na minha própria casa, com um coquetel em punho e retribuindo emojis de dedo com emojis de língua.”
O livro foi lançado em 2020 e recebeu bons comentários na época. Acabei deixando passar e me lembrei da intenção de lê-lo no mês passado, n’A Feira do Livro que aconteceu na Praça Charles Miller, quando Madalosso foi organizadora da foto histórica que reuniu mais de 400 escritoras nas arquibancadas do Pacaembu. Suíte Tóquio também é basicamente sobre mulheres. Quem rapta uma criança lá no começo do livro é Maju, uma empregada doméstica, e o contraponto é feito pela mãe da menina, sua patroa Fernanda, que foge da própria vida de bem-sucedida chefe de família para explorar uma paixão com outra mulher.
A narração em paralelo me incomodou um pouco a princípio. As vozes contrastantes das duas personagens ressaltam diferenças de origem e do universo de cada uma, às vezes beirando o estereótipo. Enquanto a executiva carrega seu relato com referências pop e usa de forma irônica anglicismos como “fazer uma call” e “mandar um save the date”, a diarista usa regionalismos interioranos e interjeições religiosas. Depois de alguns capítulos cismando que não era assim que pessoas como essas mulheres falariam, entendi que era assim que essas personagens escreveriam suas histórias. Pensando em dois livros combinados, cujas narradoras não se importam em competir entre si, apenas em arrazoar as decisões que tomam em suas tortas jornadas, Suíte Tóquio fez mais sentido para mim.
“E agora, o que vamos fazer?,ela pergunta assim que acaba o sanduíche. É um problema de todas as crianças dessa época, achar que tem que ficar fazendo alguma coisa o tempo inteiro, como se estar aqui vivendo já não fosse uma ocupação. Eu já contei para ela, quando era criança ficava no terreiro de casa o dia inteiro sem fazer nada, uma minhoca passando era um acontecimento. Agora não, a criança precisa de fogos de artifício pra achar a vida interessante, e lá vai a mãe correr atrás de foguete.”
Além dos dilemas diretamente relacionados ao rapto que é o conflito central, Maju e Fernanda conduzem quem as lê por outros assuntos sensíveis: desigualdade social, maternidade, monogamia, vocação profissional, amor em suas tantas possibilidades. É ainda uma obra que se soma à urgente discussão sobre o trabalho doméstico no Brasil - ao lado de sucessos recentes como o filme Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert, ou o podcast A Mulher da Casa Abandonada, comandado por Chico Felitti, que vem causando justo estardalhaço nas redes sociais - e naturalmente, sobre o quanto esse tipo de serviço ainda guarda relações com os fatores mais cretinos da nossa formação como povo.
Imagino que para mulheres haja uma experiência profunda de imersão em cada uma das duas faces dessa história. Para os homens, a leitura é no mínimo um lembrete a mais de que a gente não consegue conceber a experiência feminina de viver, mas se enriquece sempre que tem contato com um vislumbre assim, e precisa.