No ano passado eu estava planejando uma viagem que faria agora em maio. Da última vez que entrei num avião o presidente do Brasil ainda era Michel Temer e eu estava entusiasmado com a ideia de turistar de novo, mas por circunstâncias da vida acabei cancelando os planos e passei este último mês, como alguns tantos anteriores, em São Paulo mesmo. Talvez por isso, essa frustração na cabeça de não estar visitando um lugar novo por esses dias, andei cismado com essa ideia de desconhecido, e foi nisso que foquei quando assisti a Junun, filme de 2015 do americano Paul Thomas Anderson que há muito estava na minha listinha de intenções.
Segundo a sinopse, o filme é um registro das gravações do álbum também chamado Junun, feito pelo Jonny Greenwood, inglês mais conhecido por ser guitarrista do Radiohead; o também guitarrista e compositor israelense Shye Ben Tzur; e a banda Rajasthan Express, de Rajastão, na Índia, onde tudo é filmado.
Na prática, o filme usa os ensaios do grupo como pretexto para ser uma ode ao encontro com o novo. Não sei quanto o diretor era familiarizado com a Índia até então, mas ele transmite muito o deslumbramento de ver pela primeira vez paisagens e cenários que não imaginava e pessoas se comportando de formas inesperadas. O uso frequente de captação por drones - o que por si só, na época, já era uma novidade - reforça essa sensação. Em dado momento há uma queda de energia no estúdio e um dos músicos diz que é uma boa oportunidade para espairecer, sua reação tranquila parece causar espanto.
Eu já conhecia bem as canções de Junun, apesar de nunca ter ido atrás de ver direito as letras (que são em idiomas que não conheço, como hebraico e hindi) e até já tive a oportunidade de vê-los ao vivo, quando abriram o show do Radiohead aqui em São Paulo em 2018. Portanto, fui ver o filme como se fosse um episódio do programa Ensaio, mais para ver os músicos tocando e eventualmente falando alguma coisa. Em vez disso, tive a boa surpresa de vislumbrar de relance uma imensidão cultural de um ponto de vista despretensioso, tanto nos registros musicais, que contam com diversos instrumentos de timbres inusitados que não existem no ocidente, quanto do ambiente ao redor das sessões.
Outro lugar que tenho visitado virtualmente é Hyrule, e esse só dá pra visitar virtualmente mesmo, porque é fictício. É do reino onde se passa a franquia de videogames The Legend of Zelda, cujo título mais recente, Tears of the Kingdom, foi lançado há alguns dias. Essa é uma das séries mais consagradas da história dos jogos eletrônicos e eu nunca tinha jogado nada dela até esse ano, já que nunca tive os videogames da nintendo que circulavam na minha época de criança, como o Super Nintendo e o Nintendo 64, e esses jogos mais longos são mais complicados de jogar em locadora do que um Super Mario ou um Donkey Kong.
O videogame é o suporte com maior vocação para explorar o sentimento de descoberta, e quanto mais avança a tecnologia, mais as desenvolvedoras conseguem criar narrativas não-lineares em mundos amplos que podem ser explorados conforme a vontade de quem joga. Tears of the Kingdom é uma continuação direta do Zelda anterior, Breath of the Wild, que foi o que eu joguei, e havia na internet uma certa preocupação de o jogo ficar repetitivo, já que se passaria, teoricamente, no mesmo mundinho que o antecessor. Claro que a equipe responsável não cairia num erro primário assim.
Pelo contrário, cada novidade surpreende ainda mais por surgir em lugares e situações que você pensava já conhecer completamente. Ainda que as localidades sejam as mesmas, o jogo te convida a olhar para o alto e visitar novas áreas em ilhas voadoras; a olhar para baixo e se meter em subterrâneos antes inexplorados; a olhar de novo para o passado de personagens e lendas locais para entender melhor o que está acontecendo agora. Eu mal comecei a jogar e já me vi reagindo com carinho ao rever personagens que cortaram o cabelo ou se aposentaram desde o jogo anterior, com curiosidade ao ver cidades em que novos prédios foram construídos, com medo de criaturas que aprenderam formas novas de me atacar.
Para além das novidades que encontramos pelo mundo, Tears of the Kingdom faz bom uso de clichês heroicos para tratar do desconhecido interno, que é o mais importante. No primeiro jogo, o protagonista Link começava acordando de um sono longuíssimo e sem lembrar de nada, então ao longo da jornada ia conhecendo a si mesmo através de souvenires, recordações e relatos. Na nova aventura, o recurso narrativo trabalhado é o do destino desconhecido. Link é avisado que caberá a ele resolver todo o mal que está assolando o reino, recebe uma espécie de implante sobrenatural e tem de descobrir e se familiarizar com novas habilidades e poderes que não sabia que possuía.
Para levar isso para a vida, temos que fazer algum contorcionismo interpretativo que acho que vale a pena. Talvez se comparar com um herói lendário e seus recursos mágicos seja um pouco forçado, mas se retomarmos o exemplo de Junun e da combinação de capacidades díspares como de músicos de várias origens compondo juntos, dê pra encontrar nos outros o potencial sobrehumano e desconhecido que temos a explorar em nós mesmos.