Pelo ruído do tempo - Sinto Muito #18
Quem é que aguenta esse negócio de viver um momento histórico?
Olha aí, mais uma semana que passou sem você escrever nada.
Como o som grave e trepidante que se usa no cinema antes de uma cena de desastre natural, o ruído do tempo cansa minha cabeça culpada. Da terceira prateleira da estante, Carlos Marighella me olha cor-de-laranja nos traços estilizados de sua feição terna e desafiadora, melhor forma de ilustrar a frase famosa de Guevara, seu companheiro de sonho revolucionário nos anos 1960.
Comprei a biografia escrita por Mário Magalhães no ano de seu lançamento, 2014, com um vale-presente que ganhei do meu patrão pelo meu aniversário. A escolha do livro foi um capricho de quem remoía alguma revolta com as condições da rotina de trabalho, todo dia pegando busão lotado para dar expediente em bairro chique. Repousando na estante por oito longuíssimos anos da nossa perturbada história, esse foi o livro que mais demorei para começar a ler desde que adquiri. E para minha surpresa, acho que foi também a minha leitura mais rápida da vida, já que em menos de duas semanas atravessei suas seiscentas e tantas páginas num envolvimento febril. Por outro lado, quando pretendia falar dessa leitura eu travei, daí estarmos há quase dois meses com este canal interrompido.
Uma ideia que eu tinha anotado para falar sobre Marighella é que seu texto é tão cativante que dá vontade de nunca mais ler ficção, só se dedicar a livros de história. Agora, prestando mais atenção na história sendo escrita ao vivo enquanto testemunhamos, como se diz, um momento histórico, caio naquele clichê de que história e ficção podem ter mais semelhanças do que a gente costuma lembrar. Sobre isso, inclusive, o livro de Magalhães é exemplar. O esforço do autor em quebrar mitos equivocados e detalhar momentos até então obscuros da vida de Marighella é perceptível no texto e registrado com justiça no livro, em notas que relatam seus mais de dez anos de pesquisa, centenas de entrevistas e milhares de consultas a documentos e publicações de época.
“Em março de 1949, a eleição para a Associação Brasileira de Escritores virou pancadaria. O jurista Homero Pires, um liberal, presidiu a chapa dos comunistas. Seu adversário foi o deputado udenista Afonso Arinos de Melo Franco. O PCB inscrevera na entidade alguns militantes escrevinhadores de, no máximo, cartas, e por isso venceu. O pecebista Dalcídio Jurandir e o ex-comunista Carlos Drummond de Andrade saíram no tapa pelo livro de atas. Com a paciência esgotada, Graciliano Ramos subiu numa cadeira e se esgoelou: ’Vão todos à puta que os pariu!’ ”
A obstinação do biógrafo faz jus à do biografado. Conforme acompanhamos as quase seis décadas de vida de Marighella, vemos um camarada que não desanimava nem nas mais graves situações - ilegalidade, perseguição, reclusão, tortura - e fazia o que fosse preciso para manter o projeto revolucionário marchando. Assim ele se candidata a deputado e ajuda a escrever a constituição do Brasil em 1946, assim organiza seus colegas de prisão para criar uma escola de alfabetização e formação política dentro do presídio, também assim atravessa o mundo de Cuba à China, com direito a aprender noções de mandarim. Por todos os meios possíveis, entregando a vida e a morte por sua missão.
“Quando uma meningite desencadeou uma febre incandescente em Clara, Marighella carregou-a a uma avenida, onde camaradas a resgataram de carro e a levaram para um médico comunista atendê-la. Ela convalesceu por três meses, longe de casa. Nesse período, para que ninguém perguntasse pela saúde da moradora sumida, Marighella não acendeu as luzes, guiando-se pelo brilho de velas.”
É duro ler uma história como a de Marighella e não se sentir pequeno. Primeiro há um ímpeto de fazer o que precisar ser feito, depois vem a realidade, os compromissos, a obviedade de que nem todo mundo é um herói revolucionário e a maior parte de nós passa por seus momentos históricos de forma tangencial. Talvez seja eu que esteja muito mal resolvido comigo mesmo ultimamente, talvez seja a vocação para controvérsia que faça até a inspiração despertada por Marighella trazer consigo alguma turbulência. De certa forma, isso pode ser sentido no filme dirigido por Wagner Moura, na música cantada pelo Caetano e na música ainda melhor composta pelos Racionais.
Ainda em janeiro, poucos dias depois de terminar a leitura, visito um pequeno bloco de pedra na calçada de um bairro de gente rica aqui em São Paulo. O Monumento a Carlos Marighella fica no local em que o deputado foi assassinado pelo estado brasileiro, na Alameda Casa Branca, xará da sede do governo americano em Washington. Mais um golpe da ironia que Marighella apreciava. Nos seus últimos anos de guerrilha, quando já era chamado de Inimigo público número 1 pelo regime militar, um de seus codinomes era Maluf, em referência ao então governador paulista nomeado pela ditadura, aquele mesmo que estava aí até outro dia pedindo seu voto.
“Marighella rompeu com os dogmas. Ao eleger o campo como cenário decisivo da revolução, contrariou o status de protagonista da classe operária, noção elementar de Marx. Desprezou a formação de um partido, dando as costas a Lênin. ‘A ortodoxia é coisa de religião, e da velha religião’, repetia. Ainda assim, até o último piscar de olhos se proclamou comunista.”
Talvez faltasse mais ironia para se poder falar desse livro. Agora, com foguetes disparados lá da Rússia e até o nome do Lênin voltando a aparecer nos jornais, quem sabe faça mais sentido reforçar como a história é tortuosa e como é útil termos figuras marcantes para organizar - ou desorganizar - os acontecimentos. Carlos Marighella é um dos grandes que tivemos.
Outra ideia que eu tive enquanto pensava falar sobre a biografia de Marighella era fazer um paralelo dela com a série do Maradona na Amazon Prime Video. É um outro país, um outro recorte de tempo, um outro campo como cenário dos acontecimentos, e ainda assim tem muita semelhança. É a América Latina, a desigualdade, a ditadura. Tortura, um representante do povo cheio de contradições e conflitos internos e externos. Aqui também são pontos fortes os materiais de arquivo intercalados à narrativa.
De diferente do livro, esta produção se permite algumas intervenções ficcionais para que a história caiba no formato de minisérie, mas nada de muito radical até onde eu sei. É uma boa pedida para quem curte história, futebol ou quer conhecer algumas canções de rock argentino.
O último e-mail que eu mandei antes desse, não sei se você lembra porque já faz muito tempo, era sobre bandeiras. Minha amiga Carmen respondeu resgatando um texto publicado pelo Pedro Cardoso em 2020, no Instagram, ilustrado por uma bandeira do Brasil desfocada e em tons de cinza. É a fala de quem estava com raiva e exaustão do que passávamos no momento, e não vejo muito motivo para se sentir menos assim agora:
“Não existe Brasil. Existe um amontoado de gente jogado no mesmo pedaço de chão, convivendo forçosamente, obrigados a se dizer pertencer a mesma nação. O Brasil é falso como a letra do seu hino, que, aliás, é feia e mal escrita. O Brasil nunca foi gigante porque ele nem sequer existe. Nenhuma nação surge de 350 anos de escravidão.“
Você pode ler o texto completo lá no Instagram do Pedro Cardoso.
Sobre essa longa pausa, eu só posso dizer que sinto muito mesmo. As últimas foram bastante atrapalhadas, especialmente dentro da minha cabeça, então é uma conquista estar te mandando esse e-mail aqui. Espero que a essa altura ele não vá direto para a caixa de spam, e que nas próximas semanas eu consiga manter o embalo. Para todos os efeitos, seguimos online. Até!