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Amor livre é pleonasmo. Tenho um cartão postal com essa frase, que deixo exposto em uma estante na sala aqui de casa. Veio de brinde com um livro que eu comprei, e sempre achei a frase tão natural e certeira que nunca me passou pela cabeça procurar de quem era, me soava como um desses provérbios que simplesmente existem. Antes de escrever isso aqui, até fui lá olhar de perto para conferir se não tinha mesmo algum crédito no postal, e pra minha surpresa, tinha.
Quis conferir porque recentemente encontrei de novo essa frase. Amor Livre é Pleonasmo é o título de uma antologia de Nivaldo Brito, e esse preâmbulo exemplifica um de seus traços mais fascinantes, que é como seu texto flui de maneira espontânea, possivelmente fruto de sua experiência como slammer. Não só na forma, mas também em assuntos que faz questão de tratar, de buscar a poesia no trivial, no ordinário, no que via de regra a gente deixa passar batido.
”Não é preciso ir muito longe para conhecer coisas bonitas e grandiosas. Se permita ser turista em casa. Construa seus próprios cartões postais. Não hesite em sacar uma câmera e sair por aí fotografando a vizinhança ou simplesmente, se encare na lente. Não seja um estranho de si mesmo, de sua história. Desabotoe os olhos e descubra que não importa o quanto o mundo seja grande: ele começará sempre aqui, na sua frente.”
Para além de poemas, a antologia se compõe de crônicas, contos, microcontos, aforismos, cartas, tudo quanto as letras conseguem render tá ali demonstrado. E a organização do material ajuda a criar significado, como num processo de montagem cinematográfica. Levanto a bola para mim mesmo, porque li Amor Livre é Pleonasmo em um período em que estava assistindo a alguns filmes de Agnès Varda, e não pude me furtar de pensar que há montagem em um livro de poesia tanto quanto há poesia na edição de um filme.
Até porque, nos filmes de Varda, também é muito presente a valorização do caráter fantástico da rotina, do fabuloso cotidiano de todos nós. Tomemos como exemplo seu documentário Daguerreótipos, de 1975, dedicado a retratar os comerciantes da Rua Daguerre, onde a diretora morava. Vemos lá o açougueiro, o padeiro, a farmacêutica, cada um contando sobre sua vida, à primeira vista, simples. O entrelaçamento das histórias e sua sobreposição a cenas do show de um ilusionista, que aparece para se apresentar no bairro, resulta na conclusão de que todos aqueles trabalhadores são mágicos. E fica tão evidente…
Pode parecer raso um filme cuja premissa é apenas conversar com vendedores de determinada rua, e convenhamos que poderia mesmo resultar em algo simplório, mas a construção sutil da personalidade dessas figuras e o que elas representam em conjunto é muito impactante. Há uma longa sequência em que cada um comenta sobre seus sonhos, associados à rotina de trabalho com uma frequência que chega a incomodar. Em outra cena, cada um vai contando de onde veio. O comércio da Paris do final do século XX é todo movido a força de trabalho vinda de outras cidades. De retirantes, como prefere chamar Nivaldo em seus poemas.
“Mas é verdade, eu admiro cada um dos meus amigos; todo retirante é meu conterrâneo.
Acho que ainda essa semana vão colocar outra pessoa para fazer o mesmo trabalho que ele fazia aqui. Afinal, tem sempre um Bahia procurando emprego. Entenda que ser Bahia em São Paulo não tem a ver com naturalidade, é um estado de invisibilidade.”
Eu acho curioso como a gente, quando lê um texto, vê um filme e etc, abre a antena para captar sentidos a partir das obras. Enquanto assistia a Saudações, Cubanos!, documentário que Varda montou em 1963 a partir de fotos tiradas em uma viagem à Cuba, me lembrei que na orelha de Amor Livre é Pleonasmo se faz menção à ilha, já que o autor “desenvolveu práticas de incentivo à escrita e leitura pelas periferias do Brasil, Argentina, Uruguai, Chile, México e Cuba”. Em Os Panteras Negras, gravado em 1968 durante um protesto do movimento negro homônimo nos Estados Unidos, a diretora destaca por diversas vezes o papel da cultura na luta política, seja com cantos, com a iconografia dos cartazes e bottoms, com a explicação de mulheres que integravam as marchas sobre o motivo de usarem o cabelo black power. Nos textos de Brito, a luta operária também é inseparável da proposta estética.
“Seja no asfalto ou no lixão
na merda ou nos corações
as flores não param de nascer.Passem longe,
fascistas incendiários de favelas.Caiam fora,
políticos agiotas de esperança.Uma flor nasceu em mim.”
O mais marcante, para a minha percepção, foi como cismei de associar autores de pontos geográficos, recortes temporais e suportes de trabalho distintos por conta de mensagens consonantes de autoafirmação e identidade. Em um dos filmes mais recentes de Agnès Varda, Visages, Villages, de 2017, ela retoma a ideia de mostrar a grandiosidade do cidadão comum, agora sendo um pouco mais literal. Em parceria com o fotógrafo JR, viaja pelo interior da França e produz retratos enormes das pessoas que encontra. De novo, um ponto de partida relativamente simples que se desdobra numa narrativa emocionante.
Agnès Varda é integrante do lendário movimento da Nouvelle Vague, consagrada desde o século passado e parte do cânone histórico do cinema mundial. Nivaldo Brito é um escritor independente que comanda a própria editora, Selin Trovoar, pela qual publica outros tantos autores oxigenando a literatura brasileira de agora. Cada um dá seu quinhão pelos seus e provavelmente eles só estejam juntos em agrupamentos tão generalistas quanto o de se dizer que ambos são artistas. Eu não sei o que eu teria em comum com um ou outro, nem sei em quem você pensa quando pensa em quem são os seus. O que eu sei é que tem alguma coisa de humanidade que junta tudo.
“O ódio é considerado por muitos como o símbolo máximo da subversão, do anti-sistema. Odiar está na moda. No entanto, não há nada tão underground quanto o amor. Botar fé. Isso sim é ter personalidade, é nadar contra a corrente.
Os outros somos nós.”