Ainda estamos aqui, hein. Semana passada passou batido, entre outras coisas, porque fiquei doente. Nada de grave, só uma dessas viroses sazonais que derrubam a gente por uns dias, perfeita para procrastinar atividades como a escrita de e-mails. A menos que fosse o caso de escrever sobre os próprios sintomas, mas este espaço não é um blog do tipo meu diário virtual, como se fazia na internet de antigamente, então eu precisava de alguma desculpa mais elevada para tratar disso.
Comecei a ler O Álbum Branco, da Joan Didion - autora que estava na minha fila faz tempo - e logo de cara encontrei o caminho que procurava.
“A paciente a quem esse relatório psiquiátrico se refere sou eu. […] A título de comentário, considero, hoje em dia, que um episódio de vertigem e náusea não me parece uma resposta inadequada ao verão de 1968.”
O livro é formado por vinte textos, nos quais ela reflete sobre o que foram os tumultuados anos 60 para os Estados Unidos e para ela individualmente. Psicodelia, Vietnã, Panteras Negras, Charles Manson… não foi um período exatamente sossegado. E ela, como uma jovem jornalista se destacando em seu meio, circulava por aí vendo de perto muito do que acontecia de mais marcante. Junto com Truman Capote, Gay Talese e outros tantos, Joan Didion foi um dos expoentes do chamado New Journalism, um estilo de não-ficção que é meio reportagem, meio crônica, meio ensaio, até meio poético. Essa subjetividade, que chega a ser confessional em alguns pontos, talvez seja a melhor forma de registrar momentos turbulentos como aqueles anos 60 ou os anos 20 em que nos encontramos.
“…seis palavras que não tinham significado para mim, mas que, naquele ano, pareciam sinalizar o início da ansiedade ou do pavor. As palavras, uma frase de Numa Estação de Metrô de Ezra Pound, eram: ‘Pétalas num galho preto e molhado’. O rádio tocava “Wichita Lineman” e “I Heard It on the Grapevine”. ‘Pétalas num galho preto e molhado’. Em algum lugar entre o viaduto Yolo Causeway e Vallejo me ocorreu que, no decorrer de qualquer semana, eu conhecia muita gente que via com bons olhos o bombardeio de usinas.”
Se identificou com isso aí? Espero que sim. A forma como Didion retrata o tal verão de 68 me trouxe muito à cabeça o título de uma obra lançada alguns meses antes por um brasileiro, Terra em Transe. Ao dizer que uma crise nervosa é uma resposta adequada ao seu contexto, há subentendida a ideia de doença coletiva, social. Por aqui, além de Glauber ter cantado essa bola pouco depois do golpe de 64, se tornou comum dizer que o Brasil está doente desde meados de 2016.
Estou tratando principalmente do texto “O Álbum Branco”, que abre o livro, o nomeia e é também o mais longo dos vinte que o compõem. No final, este texto especificamente se revela de fato sobre uma doença, mas é tão exemplarmente construído que eu não tenho como recortar um pedaço de parágrafo e citar aqui para demonstrar. A ideia de uma sociedade febril, por outro lado, acho que ficou clara.
Estar doente envolve ter uma certa desconfiança da realidade, cochilar e depois não saber se determinadas lembranças são de sonhos ou não. Episódios de pânico, ansiedade e descontrole emocional também colocam em xeque a credibilidade da memória. Ler sobre períodos difíceis que ficaram para trás me faz querer crer que um dia isso que vivemos possa ser visto como um pesadelo, um delírio coletivo causado por uma grande febre.
“à noite, o cheiro de jasmim entrava por todas as portas e janelas abertas. Preparei bouillabasse para pessoas que não comiam carne. Imaginei que minha vida era simples e doce. De vez em quando era, mas havia coisas estranhas acontecendo pela cidade. Boatos e histórias. Tudo era inenarrável, mas nada era inimaginável.”
No ano passado, o pianista carioca Jonathan Ferr lançou um disco lindo chamado Cura, cujo título se explicita na última faixa, “Caminho”, na qual a psicanalista Viviane Mosé declama sobre como o processo de cura se espraia por tudo na vida e não acontece instantaneamente. Se há algo que precisa de cura e está nesse caminho, a cura já está acontecendo.
“A cura está acontecendo agora.
A cura está acontecendo neste momento.
Neste momento.”
Outro dia eu escrevi aqui sobre Luxúria, da Raven Leilani, e na ocasião comentei sobre como ela usa muitas referências hiperlocais e hipercontemporâneas para compor o universo em que a história se passa, destacando que é um recurso recorrente em literatura jovem. Me esqueci de mencionar que é também uma prática comum da não-ficção, como fica demonstrado no texto de Didion. Neste caso, tem mais a ver com impregnar o registro com verossimilhança, detalhes trazidos direto do mundo real.
Ainda sobre Luxúria, minha amiga Malu me mostrou um podcast bacana sobre o livro, um episódio do Rádio Companhia, da editora que o publicou no Brasil. Lá se explora bastante algumas chaves de leitura que não comentei no meu texto. Recomendo a audição (naturalmente, tem um monte de spoilers).
Cuide da sua saúde, até a próxima!
não li os últimos envios pq a cabeça anda meio sem espaço, respirar e decidir o q almoçar têm sido exaustivos
mas aí depois de uma noite doente recebo esse título
bem, é isso
parabéns pelos txts