Eu não assisto novelas. Já até tentei umas poucas vezes, mas tenho algumas cismas que me bloqueiam, sendo a principal delas o uso do grito como recurso argumentativo. Não dá pra assistir a dez minutos de uma dessas tramas da globo sem passar por uma cena de discussão que descamba pro berreiro generalizado, eu não aguento.
Me lembrei disso quando comecei a ver a série The Bear, depois de enfáticas recomendações de amigos, e estranhei estar gostando de uma história contada com uma coleção de elementos que eu costumo rejeitar: Sinopse baseada numa família em crise e segredos escondidos, protagonista excepcionalmente talentoso em determinada habilidade, parábolas sobre gestão de pessoas em ambiente profissional, tensão sustentada por gritos e mais gritos.
Depois entendi uma diferença fundamental na gritaria da série. Ela não visa compor a narrativa nem os personagens, é uma forma de construir o cenário. O caso é que grande parte dos acontecimentos se passa na cozinha de um restaurante, que o protagonista Carmen herda de seu irmão suicida, e o desconforto sonoro é uma das camadas usadas para demonstrar como o ambiente é insalubre. Outro método que se soma a isso é a subversão dos tradicionais supercloses usados em atrações culinárias de TV. Na caótica cozinha do The Beef, as câmeras focam na sujeira, na comida caída no chão, no maço de cigarros que acompanha os personagens em busca de alívio.
Este tipo de imagem, aliás, é usada também de maneira irônica, destacando de latinhas de refrigerante a comida congelada, ou até dramática, quando determinado prato serve de gatilho para traumas associados à profissão. Comida afetiva ao contrário, e um olhar sem muito glamour para a toxicidade de certos ambientes de trabalho.
Criada por Christopher Storer, The Bear foi renovada para uma segunda temporada e vem ganhando alguns prêmios, em sua maioria em categorias de “comédia ou musical”. De musical não tem nada, então entende-se que se trata de uma comédia, o que eu acho um grande exagero. Há algumas cenas em que o inusitado te faz sorrir, mas isso é cabível em qualquer bom drama. Fico com a impressão de que essa divisão tem mais a ver com a duração dos episódios, sendo que na televisão americana, o que não passar de 30 minutos fica enquadrado como comédia. Especialmente na segunda metade da temporada, quando o ritmo fica um pouco menos frenético e já se conhece melhor as motivações e conflitos de cada personagem, há cenas de cortar o coração.
Uma das minhas cenas favoritas tem a ver com uma discussão sobre o público-alvo do restaurante. Um personagem aspira elevar o cardápio com pratos mais sofisticados e com maior margem de lucro. Outro defende que o The Beef tem algo de função social, de acolher quem está duro e servir pratos baratos para compartilhar, como faz há décadas. Fiquei pensando em como a gente ia reagir se a lanchonete do Estadão de repente se prestasse a servir risotos requintados, por exemplo.
Mais pro fim da temporada, a série ainda me dobrou de novo se comportando de modo inverso do que eu gostaria. Primeiro que eu não gosto de me sentir subestimado como espectador, e no último episódio há uma espécie de gabarito do que está em questão para aqueles personagens. Mas isso acontece em uma cena lindíssima de monólogo que não vou detalhar mais pra não estragar sua surpresa. Mais adiante, tudo é bastante redondo e bem arramado para as sequências finais, a ponto de eu suspeitar que a produção quis fazer uma conclusão que fosse suficiente mesmo se a série não viesse a ser renovada - e eu costumo simpatizar mais com finais em que algo fica faltando, que sobra algum trabalho para a nossa cabeça.
Mas o programa parece concordar com aqueles cozinheiros que dizem que o mais importante são os fundamentos e não é necessário supercomplicar as coisas. A história do arroz com feijão bem feito. E já que me permiti o clichê da analogia culinária, vou dizer que The Bear segue receitas clássicas em grande parte de seus personagens e acontecimentos, mas guarda também algumas boas surpresas que valem a pena experimentar. Mesmo se seu paladar for um pouco chato, como o meu.
*chef's kiss* esse texto