Não é novidade que andamos passando tempo demais online. De fato, o normal hoje é estar conectado à internet o tempo todo, o que se calcula, no máximo, é o chamado “tempo de tela”, quantidade de horas em que ficamos objetivamente olhando para algum dispositivo, mas para além disso, já é bastante comum o convívio com outros equipamentos ditos inteligentes, desde os mais limitados, como lâmpadas e fechaduras, até maquininhas faz-tudo como a Alexa e similares. A noção de estar sendo constantemente rastreado, ouvido e até observado, como na previsão distópica de Orwell em 1984, vai se tornando cada vez mais normalizada, exigindo mais imaginação de novos autores de ficção que queiram provocar seus leitores com engenhocas tecnológicas que atentem contra a privacidade. Só por conseguir isso, Samanta Schweblin já está de parabéns com seu Kentukis.
A máquina inventada pela autora argentina - o kentuki - consiste em uma espécie de brinquedo, um robozinho revestido de pelúcia, munido de câmera e sensores e controlado remotamente via internet. Até aí nada demais. A questão é que não é o proprietário do boneco que o controla, os acessos para “ser” o bichinho são vendidos separadamente e a conexão é aleatória. Então quem decide conviver com um desses androides de estimação está trazendo para a própria casa um usuário anônimo que pode estar em qualquer lugar do mundo, já que, é claro, os kentukis são um fenômeno de vendas global.
“Então uma de suas vizinhas cruzou o corredor e Emilia a achou tão velha, grisalha e manca, resmungando desgraças em voz baixa, que recuperou certa dignidade. Posso estar louca, mas pelo menos estou atualizada, pensou. Tinha duas vidas, e isso era melhor que ter apenas meia vida e coxear aos solavancos. E, afinal, o que tinha de mais passar ridículo em Erfurt, ninguém estava olhando e valia a pena o carinho que ganhava em troca.”
Partindo desse pressuposto, várias histórias são contadas alternadamente. Algumas mais curtas, outras episódicas, divididas em capítulos que vão se alternando ao longo do livro. Em certa medida, a leitura se assemelha a um feed de rede social, com cenas da vida de cada pessoa se intercalando, compartilhando sua atenção mas indiferentes entre si. A escolha de não escrever o romance todo ao redor de um único núcleo é ótima para a autora, que consegue usar abordagens narrativas diferentes para cada conexão que retrata. Algumas enquadram mais o “amo” - usuário que compra o kentuki para ser seu pet - outras destacam quem está pilotando o bichinho. Outras ainda tratam de como a onipresença dessa nova forma de vida e de interação social afeta o cotidiano. O tom também varia: há situações engraçadas, tristes, de terror e de ternura.
Ainda que não seja uma história contada linearmente, a ordem dos capítulos está longe de ser aleatória. Schweblin habilmente espalha informações de contexto no plano de fundo das cenas. Quando aumentam e baixam as vendas de kentuki; como o mundo político reage a sua existência; como os incidentes que os envolvem são noticiados. Outra vantagem dos múltiplos pontos de vista é poder explorar muitos cenários, desde robozinhos sendo usados para crimes até histórias de amor construídas ao redor de interações com eles. O único aspecto que senti falta de ler sobre foi a respeito de quem fabrica os bonecos e como foram criados, embora seja verossímil uma certa nebulosidade em torno disso, como existe sobre os armazéns da Amazon ou os escritórios das big techs em geral.
Os exageros de concessão da própria privacidade e a obsessão por desconhecidos (há “seres” kentuki que desenvolvem devoção por seus “amos”) também esbarram no que já achamos normal fora das páginas. Espero que não seja só eu que me surpreenda com o tanto que algumas pessoas compartilham de suas vidas diariamente nas timelines, nem com o tanto que podemos admirar criadores de conteúdo que temos a ilusão de conhecer como pessoas. Kentukis é uma leitura agridoce em muitos momentos, por refletir à sua maneira as performances que fazemos para câmeras e seguidores o tempo todo.
“Era algo que Eider não tinha pensado. Nunca tinha lhe passado pela cabeça que agora, além de todas as especificações que era preciso ler quando se comprava um eletrodoméstico novo, tinha que pensar também se seria digno para esse objeto viver ou não com as pessoas. Quem iria refletir, diante de uma gôndola de supermercado, se o ventilador que se está pensando em levar para casa estaria de acordo com a ideia de ventilar um velho de fraldas assistindo à tevê?”
E se olharmos para o outro lado da equação dos kentukis, que são os robôs em si, a história também não está distante do que já existe. Não só pelos assistentes virtuais que comentei no começo do texto ou por aspiradores de pó que vagam sozinhos pela casa, mas por robôs de estimação mesmo. Está em cartaz na Japan House, aqui em São Paulo, a exposição Convivendo com robôs, que conta com cerca de uma dúzia de modelos de máquinas programados para simular reações sentimentais, despertar empatia e outros recursos do tipo, comercializadas no varejo da mesma forma que quaisquer outros eletrônicos. Fiz uma visita e posso confessar que é difícil não ter os sentimentos tapeados quando se afaga uma bolinha de pelo robótica e ela abana o rabinho de satisfação.
Alguns modelos até dão a impressão de terem sido pesquisados por Samanta Schweblin para criar as descrições dos kentukis. Não especificamente os que estão na Japan House, já que a publicação original de Kentukis (2018) é anterior ao lançamento da maior parte dos itens expostos, mas gerações anteriores e protótipos, seria bastante plausível.
Fora a identificação com o contexto tecnológico da ficção - por exemplo, a forma como uma nova tendência de tecnologia se infiltra na vida de todo mundo e se torna um assunto incontornável, como vem sendo empurrada a inteligência artificial no imaginário da gente sem a menor parcimônia - o livro é perturbador por saber explorar uma dualidade tão cruel quanto real: São histórias que mostram como é possível criar laços afetivos com desconhecidos e humanizar seres inanimados, mas que não se esquecem de como é possível se desconectar de quem está perto, trocar a vida real por simulações e, o pior que pode acontecer, desumanizar pessoas.
“Jantavam na sala com o rádio ligado. A mesa era grande demais para os dois apenas, então a mulher que se encarregava da casa punha uma toalha dobrada em uma das pontas e preparava um lugar de cada lado. Dizia que isso lhes dava intimidade, que era importante que em uma mesa um comensal pudesse passar o pão ao outro. Embora na mesa à qual Marvin se sentava toda noite não se ouvisse nada além do rádio, e nunca na vida tivesse visto o pai passar o pão a alguém.”
Estejamos alertas para a vida real.
Olá! Esse seu texto me lembrou de episódio da Rádio Novelo - "O que há em nome", de 11 maio.
E o "Be right back" de Black Mirror