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O que há de comum entre a Universidade de Duke, que fica no estado americano da Caronina do Norte, e o Seringal Bagaço, localizado no Acre, Brasil? Pode ser pouco, mas é importante, veja alguns dados que achei enquanto escrevia este parágrafo: A Carolina do Norte está no mesmo fuso horário que Brasília, portanto apenas uma hora adiante do Acre, onde fica o Bagaço. O orçamento anual da Duke gira em torno de 3 bilhões de dólares de acordo com a Wikipedia, o que dá, na cotação atual, algo próximo dos 16 bilhões de reais que totalizam o PIB acreano - que ultrapassa, por pouco, apenas o de Roraima. Fundada em 1838 com o nome de Brown School, a Duke só foi ter o nome atual com o título de Universidade no século XX, em 1924, quando o Acre já era um território federal oficial, mas ainda não era um estado da Federação, o que só foi ocorrer em 1962.
Coincidências a parte, o que me motivou a relacionar estes dois lugares é a importância que eles tem na vida de dois brasileiros brilhantes que ouvi contarem suas histórias em podcasts recentemente, Marina Silva e Miguel Nicolelis.
Você conhece este formato de podcast, de entrevistas bastante longas, clima descontraído etc. A princípio eu não ia muito com a cara desse gênero, por achar que o bom e velho trabalho de edição que a TV sempre fez poderia transformar uma entrevista mediana de quatro horas em um bom programa de 30 minutos. Acontece que a tendência vai evoluindo e hoje gosto de algumas atrações que considero meio-termos. Programas editados, com duração entre uma e duas horas, com entrevistadores experientes e/ou bem treinados e/ou acompanhados por boas equipes.
Deste tipo, acredito que o Mano a Mano, podcast do Mano Brown no Spotify, seja um dos mais comentados. Gosto muito de como ele contrariou a expectativa inicial de que seria um programa de discussões em clima de enfrentamento, como na célebre entrevista que ele fez com Fernando Holiday. A 4ª temporada se encerrou neste agosto com a entrevista da Marina, e é uma daquelas que por si só justifica toda a existência do programa, do formato, dos podcasts em geral.
“Minha vó adorava literatura de cordel, ela era analfabeta mas ela tinha uma inteligência fora do comum. O meu pai sabia ler, então ele lia os romances de cordel e a minha avó, em duas vezes que ele lia, ela decorava tudo, a minha avó adorava aquilo, então ela interpretava os repentes. Ela pegava 2 Banquinhos. Ela sentava num, ela era o Zé Pretinho. Ela sentava no outro, ela era o Cego Aderaldo. E aí ela fazia a cantoria para mim.
Então eu era uma criança que que foi muito estimulada, conhecia muitas espécies de árvores, muitas espécies de cipó, muitas espécies de pássaro - não o nome científico, obviamente. E eu sempre brinco que eu fui analfabeto até aos 16 anos, mas eu já era PhD em saber narrativo, que é o saber das populações tradicionais.”
Todo brasileiro que se preze já deveria conhecer bem a história de Marina Silva, que foi uma das protagonistas, no mínimo, de nossas três últimas eleições presidenciais, sendo candidata ou não ao Planalto. Eu não conhecia tanto. Sabia que ela vinha do Acre, que foi discípula de Chico Mendes, que foi alfabetizada tardiamente, senadora, etc. Ainda assim, o relato em primeira pessoa, num registro muito mais pessoal que em qualquer outra entrevista sua que já vi, foi como se ela estivesse de fato se apresentando. Ainda mais incrível é a intencionalidade. Ela mesma diz em certo momento que nunca falou assim em nenhuma outra entrevista.
O papo também trata, claro, de política, da reconciliação pública com Lula, da posição do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima na atual estrutura do governo e tudo mais. E mesmo isso só pode ser escutado em sobreposição ao que a ministra conta de sua infância, do extrativismo de borracha e castanhas no seringal, de seu período no convento, das doenças que maculavam sua família conforme a urbanização se aproximava da floresta. Ciência, fé, pedagogia, política, arte, tudo é intrincado, e por isso achei tão lindo ela citar a estética no meio de um argumento econômico contra o desmatamento desenfreado:
"Imagina, 75% do PIB da América do Sul está relacionado às chuvas produzidas pela Amazônia. A gente cresce 1%: Nossa, é uma alegria. 2%, um foguetório. Se passar dos 5%, pelo amor de Deus, é o Nirvana. Então quem é que destruiria, em sã consciência, 75% do seu PIB? Só mesmo uma mentalidade que nega a ciência, que nega o bom senso, a ética e qualquer senso estético de vida.”
Esse entrelaçamento temático perpassa também toda a outra entrevista que me levou a escrever estas linhas, do neurocientista Miguel Nicolelis ao Reconversa, que Reinaldo Azevedo e Walfrido Warde fazem pro YouTube. Tanto por endossarem que a ciência está ligada à política, arte e tudo mais - lá pelas tantas, Nicolelis conta que tem recorrido até à escrita de ficção para elucubrar sobre o futuro científico - quanto pelo próprio objeto de sua principal pesquisa, o estudo pioneiro das redes de neurônios, que resultaram no desenvolvimento do exoesqueleto.
A episódio é longo e aborda vários temas, sendo que o escolhido como manchete no título do vídeo é a inteligência artificial, relativizada pelo cientista como nem inteligente, tampouco artificial. Faz sentido ser este o tópico mais chamativo, já que une diversos temas ao seu redor, de política a história, além de ser uma tendência de alta repercussão atualmente.
“A quantidade de energia elétrica que está sendo consumida pelos sistemas computacionais para fazer mineração de criptomoeda, para fazer treinamento desses sistemas [de Inteligência Artificial] tá explodindo exponencialmente. Nós já estamos passando de 5% da produção elétrica do planeta para fazer esse tipo de coisa. Então existem interesses econômicos gigantescos em propagar a falácia que nós estamos ficando obsoletos.”
Ao longo dos assuntos, Nicolelis fala também de como funciona o financiamento de pesquisa nas universidades americanas, de como pinturas de cavernas e afrescos de Michelangelo ajudam a entender os paradigmas de cada momento histórico - e como o atual medo da sublevação dos computadores se insere nisso - e de como agrupamentos sociais, a exemplo de times de futebol ou ativistas políticos, tem seus cérebros sincronizados funcionando como um único super cérebro. Este centro de interesse no humano ajuda a compreender também o confrontamento à IA.
“A inteligência, por definição, é uma propriedade dos organismos. Não existe inteligência que não seja orgânica, até que provem o contrário. E ela não é artificial porque hoje em dia, para esses algoritmos funcionarem, tem milhões de seres humanos alimentando conteúdo.
Nairóbi, no Quênia, se transformou na capital dos curadores de conteúdo de treinamento desses sistemas. Esses caras passam de 10 a 12 horas por dia vendo conteúdos horrorosos para treinar o algoritmo a barrar isso. Crimes hediondos, toda sorte de coisas terríveis, esses trabalhadores que ganham $1,20 por hora. Eles se transformaram em escravos mentais de algoritmos.”
Nicolelis não se acanha de dizer que saiu do Brasil há décadas porque aqui não haveria estrutura e oportunidades para realizar as pesquisas de seus sonhos, que foi conduzir lá na tal Duke University. Marina Silva escuta há décadas que a luta em defesa do meio ambiente é uma cruzada utópica e que a pressão econômica de curto prazo impossibilitaria qualquer transformação profunda. Até agora, não estamos mesmo priorizando isso como deveríamos, e tomara que o Brasil se prepare a tempo para lidar com essa emergência. Liderados, quem sabe, pela mesma Marina.
De suas desventuras políticas, Nicolelis conta ainda de quando foi indicado pelo físico inglês Stephen Hawking para participar da Pontifícia Academia das Ciências, um clubinho de ciências do Vaticano fundado em 1603, cujo primeiro presidente foi Galileu. Na ocasião, a extrema direita brasileira encontrou e espalhou um artigo de Nicolelis em que ele se posicionava a favor do direito amplo ao aborto seguro, e a repercussão disso bastou para que a igreja suspendesse o convite às honrarias, que incluem encontro com o Papa na capela sistina e tudo mais.
O livro mais famoso de Hawking é o best-seller O Universo Numa Casca de Noz, que tem o título inspirado numa fala do Hamlet de Shakespeare. Isso lá na Inglaterra, onde todo mundo fala inglês como na Carolina do Norte. Para nós, talvez seja o caso de olhar agora para o universo como uma castanha lá do Seringal Bagaço.