A escrita, assim como todas as artes, é um trabalho. E assim como qualquer trabalho, envolve cansaço, monotonia, obrigatoriedade. A despeito disso, a produção artística é frequentemente romantizada como algo espontâneo, que acontece por si mesmo, até à revelia de quem assina a obra. É comum se ouvir dizer que a inspiração tomou a pintora de assalto, que a música veio para o compositor, etc.
Há que defenda o contrário, que é necessário ter uma rotina de expediente como todo trabalhador, que inspiração é balela e por aí vai. Eu acredito que um certo esforço de procura e concentração ajuda as ideias a aflorarem. Quando pensei em fazer um espaço para publicar pequenos textos com regularidade, uma das razões era ver se ajudava a fortalecer os músculos da criatividade, até para outros projetos que eu gostaria de realizar - ainda não aconteceu, a ver - e mesmo para esses comentários cotidianos eu sempre me vejo brigando com a falta de assunto, e não é incomum me perguntar por que ainda estou fazendo isso.
Um recurso que inventei para me salvar do deserto de ideias é manter uma lista de livros de poesia não lidos. Livro de poemas costuma ser mais curto e oferecer conteúdos ricos para citações e comentários. Para artistas como quem faz poesia, uma forma de forçar a inspiração é se impor uma proposta conceitual bem delimitada.
“Noturno
Os cabelos acariciados
por dentro do chapéu.
À espera do que se foi,
seu casaco cresce sobre a pele,
como pelo ou mofo.
As formigas caem ao acaso
na quentura do café.
A solidão queima,
como lâmpadas deixadas acesas.”
Este poema é do livro Mulheres de Hopper, da brasileira Katia Marchese. São 26 poemas, cada um deles associado a uma figura feminina retratada em pinturas do americano Edward Hopper (no caso de “Noturno”, a obra que serviu de inspiração foi o célebre quadro Automat.) No livro, em vez de reproduções das pinturas, as mulheres são apresentadas em interpretações ilustradas por Isabela Sancho.
Esse conceito, formulado praticamente como um exercício de escrita, rende um livro que traduz bem a aura perene e contemplativa de Hopper, e de certa forma subverte o caráter de indizível que domina seus quadros. Ou seja, de uma coleção de referências explícita no próprio título de Mulheres de Hopper, nasce uma obra com poética própria.
Por acaso, o título seguinte da minha lista de poesia também se vale de um formato bastante específico. As Helenas de Troia, NY, de Bernadette Mayer, tem um título bastante autoexplicativo, desde que você saiba que no estado de Nova Iorque existe uma cidadezinha chamada Troia, com menos de 50 mil habitantes, e que os poemas que compõem o livro são baseados em entrevistas com suas moradoras chamadas Helena.
(Tecnicamente acidade se chama Troy, as mulheres se chamam Helen e eles chamam o estado de New York. A edição brasileira do livro optou por traduzir os nomes para bater com os que usamos nas traduções da Ilíada de Homero, o que faz todo sentido.)
“o instituto costumava ser só para homens
meu primeiro filme proibido foi
a noite dos mortos-vivos
ficamos aqui mesmo pela região
cercas são boas
troia tronco alumínio
os mortos-vivos são todos homens
os mortos-vivos são todos gente daqui
eles acabaram de começar a aceitar mulheres”
A cidade americana de Troia faz referência à homônima lendária que fica onde hoje é a Turquia, e partindo dela, Mayer cria um universo de palavras motivos que se repetem de uma entrevista para outra, como a aparentemente insignificante pergunta sobre a cor favorita de cada Helena; lugares mencionados em vários poemas, como o teatro Proctor’s e a padaria Neligans; e jogos de palavras que envolvem até o seu próprio nome, em repetições de Mayer, Mayor (prefeito), Mayhem (balbúrdia) e por aí afora.
(Tudo isso, aliado a citações de localidades americanas e a como a poeta utiliza recursos de sonoridade e grafia das palavras, se torna um problemão para traduzir. A edição que eu li, da Editora Jabuticaba, é bilíngue, com os poemas em inglês no final, e é até interessante ir analisando como a tradutora Mariana Ruggieri se desdobrou para adaptar a obra)
“se você fazia alguma coisa errada, te puniam
uma helena é o bastante, acredite
eu não preciso olhar
[…]
eu tinha que limpar a casa de outras pessoas
por um dólar ao dia
meu cabelo está trançado como uma família
[…]
tem sido duro
minha cor preferida é talvez amarelo
todo mundo morreu
fui embora, me diverti, amei partir”
Cada poema é batizado com o nome da Helena que o inspirou (os trechos que citei aqui são de “Helena Christensen” e “Helena Crandall Whalen Villanelle”, respectivamente) e aparecem acompanhados de fotos das cidadãs de Troia, o que dá um ar de intimidade documental e deixa os textos mais intrigantes. Há muita nostalgia nas falas das Helenas, o que parece ser uma característica absorvida da própria cidade de Troia, que já teve dias mais gloriosos. Mayer trabalha tais temas com uma dignidade muito bonita.
Dessas leituras, que já confessei ter feito um pouco pela obrigação de manter a rotina de textos, saio com a sensação de que não adianta esperar a inspiração chegar sozinha para fazer alguma coisa. É como se, no fundo, não fosse possível parar. A vida segue acontecendo e se às vezes parece que uma ideia apareceu do nada, é só falta de saber enxergar por onde ela veio, se não foi a gente que traçou o caminho.
Mais ou menos como não enxergamos o que acontece fora do quarto (em Nova Iorque) no instante retratado por Hopper em Verão na cidade, quadro que inspirou um poema de Marchese que, coincidência, visita outro cenário da Ilíada.
“Pródiga
Despe os sapatos.
Farta de exílios, lava os pés
no sal quente da enseada.
Naquela bacia, resiste uma Ilha
e todas as noites a recebe de volta.Por onde vai, carrega sua Ítaca.”
Caro Rafael
Muito grata pela leitura atenta e detalhada do livro. Sinto não ter visto antes esse seu olhar sobre os poemas. Mas agora que descobri não perco mais suas leituras. Abraços desta Ítaca.
Katia Marchese