Olha aí, quinta semana seguida mantendo o ritmo desses e-mail. Já começo a me preocupar se tá ficando repetitivo o jeito de falar ou o tipo de assunto tratado aqui. Por enquanto ninguém reclamou, então vamos seguindo.
Uma coisa que eu tenho reparado enquanto preparo esses textos é como estou usando esse espaço para organizar algumas memórias na minha cabeça, depois de certa idade a gente começa a se importar mais com isso, eu acho. Por isso queria comentar sobre o disco novo do Rodrigo Amarante, que tenho ouvido um bocado desde que saiu há alguns meses.
Primeiro porque já procuro acompanhar a carreira do Rodrigo há tempo suficiente para ter memórias relacionadas a ele, segundo porque Drama é uma obra que flui como uma rememoração de histórias: Paixões, separações, epifanias e afins. Não só nas letras como também nos arranjos e produção de ar nostálgico e até na capa, esta com uma obra do artista argentino Hernan Paganini sobre um fundo branco.
“Se no verso a lua tem
O que de prosa eu vi brilhar
Vi de viés sua cor
Que atravessa o pudor
Entre o que enxergo e o meu olhar”
Tem ainda um outro ponto interessante que vi ser mencionado pelo Amarante em algumas entrevistas sobre o disco novo. O título Drama tem a ver, entre outras coisas, com a cultura tradicional de que homem não deve “fazer drama”, que demonstrações de afeto e emoção devem ser relegadas apenas às mulheres e são um sinal de fragilidade. Em mais de uma ocasião, o cantor comenta um episódio específico de quando era criança e seu pai lhe raspou os cabelos para que tivesse uma imagem mais séria e masculina. Não é necessário saber nada disso para desfrutar do disco, mas também não prejudica.
Quem me conhece deve imaginar que eu também não fui uma criança muito viril (talvez nenhuma criança devesse ser, afinal) mas em casa nunca sofri pressões a esse respeito. Me lembro que na rua e na escola era comum ter algumas hostilizações que misturavam esse machismo difuso com a implicância gordofóbica que era mais frequente. Por não ser muito dos esportes nem imitar os modos de macho arrumando briga, eu não agia como homem. Depois que comecei a deixar o cabelo crescer, menos ainda. É sem muita satisfação que eu reconheço que são marcantes para mim algumas lembranças de apelidos maldosos, constrangimentos gratuitos e gente querendo me bater sem eu ter lhes feito nada.
Inclusive, já que ainda estamos falando de memória, minha amiga Giselle me indicou um vídeo muito bacana em resposta ao texto da semana passada, de uma série documental da Netflix chamada Explicando a Mente. Eu já tinha visto alguns episódios da série anterior Explicando e sou fã dos vídeos do canal da Vox no youtube faz tempo, mas ainda não tinha visto nada dessa temporada focada na mente. O primeiro episódio é precisamente sobre a memória. Você pode ver a série neste link da Netflix.
Alguns pontos intuitivos são mencionados, como que eventos extraordinários tendem a persistir mais em nossa memória e que nossa mente usa recursos de localização e cenário para registrar os acontecimentos. É aquela história de quando você quer saber em que ano aconteceu tal coisa e usa referenciais do tipo onde você morava ou trabalhava na época. Imagino que isso ajude a explicar a confusão em que a gente entra quando tenta lembrar de fatos dos últimos 18 meses, em que ficamos na maior parte do tempo limitados a poucos ambientes.
Retomando o disco do Amarante, a canção “Um Milhão” é a que melhor representa esse aspecto das lembranças, por falar justamente de alguém que está vendo seu bairro de infância ser reconfigurado para outro tempo. O risco de ter o passado desfigurado.
“Fui à rua onde eu nasci
Vi o prédio em pé
Tudo era tão maior do que é
Encostada à vila em frente, um afronte à lei
Uma placa acesa, um muro de enfeite
No cartaz, um dia limpo
Era a paz enfim”
A preocupação socioeconômica que aparece nessa faixa soa um pouco estrangeira se comparada ao tom pessoal do resto da obra, porém, se procurar uma lógica na sequência em que as músicas são apresentadas, faz todo sentido. “Um Milhão” está na segunda metade do disco, onde as letras são mais absortas e parecem reações mais maduras de quem já passou pelas mágoas ou deslumbramentos das canções iniciais. Os últimos versos da última canção, objetivamente entitulada “The End”, são de uma resignação até socrática.
“What if I knew
Then what would I know?
To live is to fall
(E se eu soubesse
Eu saberia o que?
Viver é cair)”
É claro que o disco não é anunciado por aí como álbum conceitual e que essa chave de leitura de interpretá-lo como uma série de lembranças é só uma abordagem pessoal que me agrada por estar pensando bastante sobre isso ultimamente.
Lá no Explicando a Mente eles falam também sobre como nossas lembranças são influenciáveis por relatos de terceiros, como podemos acreditar termos vivido algo de maneira completamente diferente do que aconteceu de fato e mais uma série de outros dados impressionantes que não vou mencionar aqui para não atrapalhar tanto sua experiência de assistir. Um dos casos que eles abordam é de uma memorizadora profissional e sua tática muito eficiente (inclusive comprovada por estudos científicos) de organizar as informações que precisam ser lembradas em formato de uma historinha.
Quando associamos determinadas informações a uma narrativa, nosso cérebro se recorda delas mais facilmente. Se for uma narrativa insólita e exagerada, que se distancie dos acontecimentos rotineiros que vivemos no automático, mais ainda.
A gente lembra da própria história organizando uma série de cenas espalhadas pelo tempo, tentando dar a elas a forma de uma narrativa que faça sentido. Lembrar também é fazer drama.
Também tenho ouvido bastante esse disco! Penso em como vamos lembrar esse último período dramático e louco daqui a uns anos.