Por lembrar errado - Sinto Muito #4
Às vezes as coisas ficam na nossa cabeça de um jeito diferente.
E aí, notou alguma coisa errada no último texto? Sempre posso estar falando algo atrapalhado, não se acanhe de me corrigir. Uma coisa que me avisaram é que a série A Amiga Genial é uma produção da HBO, então pode ser vista no HBO Max, e não no Amazon Prime Video como eu falei (me dê um desconto, eu disse que não tinha assistido). Vou aproveitar esse “erramos” para puxar o papo de hoje, então.
Comecei a ler Contra Mim (Ed. Globo/Biblioteca Azul), relato autobiográfico do Valter Hugo Mãe. Como tudo que ele escreve, é um texto bastante generoso, tanto na riqueza com que ele escolhe e dispõe as palavras quanto na maneira bonita de registrar suas lembranças da família, do Portugal de sua infância, e até de si mesmo, que pelo que ele está contando até a parte que eu li, sempre foi um garoto especialmente amigo das palavras e dos bons sentimentos. Não duvido, mas imagino que seu lembrar é também uma forma de fazer poesia
O autor conta que nasceu em Angola em um período em que seu pai trabalhava por lá, e que por acaso estavam visitando portugal quando estourou a Revolução dos Cravos, de modo que a família optou por permanecer na metrópole aguardando a confirmação da oportunidade democrática. Tinha então só dois anos de idade.
“Lembro-me de imagens fugazes desse dia, e é com orgulho indisfarçável que dele guardo minha memória mais antiga.”
Você lembra de algo de quando tinha dois anos? Qual sua memória mais antiga? Eu não sei dizer a minha. Tenho algumas cenas na cabeça que imagino serem de quando eu tinha quatro ou cinco anos, e já pensei lembrar da minha festa de aniversário de três, mas acho que isso era uma confusão por ter visto muito algumas fotos desse dia que tínhamos lá em casa. O próprio Valter admite alguns detalhes desencontrados na maneira como se recorda do 25 de Abril “em que se inventou o Portugal do futuro”:
“Na minha cabeça, convenci-me de ser tomado pela minha mãe, porque é do fôlego aflito dela que guardo impressão. Hoje, diz-se que foi o avô alvez quem correu comigo ao colo. Em momento nenhum me lembro dele nesse dia. Talvez, logo ali, se revelasse que o medo e o sofrimento da minha mãe era o que me poderia afligir e dar medo também.”
Falando em lembrar das coisas de forma inexata, outro dia resolvi reassistir Matrix (só o original, os outros dois eu nunca vi até hoje, pretendo ver em breve), primeiro por ter visto o trailer do Matrix 4 (vídeo abaixo), e segundo por ter visto uma nota dizendo que o “Keanu Reeves não sabia que Matrix era uma alegoria trans, mas acha isso bacana”. (Você pode ler clicando aqui, em inglês)
Bem, se o próprio Neo não sabia desse caráter alegórico específico do filme, imagina eu? Ver o longa de novo a partir desse prisma foi surpreendente: Além da questão macro de ser tudo sobre uma vida dupla e a discussão sobre o que é a realidade, há cenas em que Neo (chamando o personagem pelo nome que ele escolhe usar, e não o de seus documentos) reage com certo horror ao próprio corpo; na cena em que conhece Trinity, diz que pensava que ela seria um homem; Morpheus diz a ele que no fundo ele sempre soube que tem algo errado naquela realidade; Neo é chamado de Dorothy e de Alice quando outros personagens se referem a sua jornada de um mundo para outro (alusões a O Mágico de Oz e Alice no País das Maravilhas, respectivamente); até as pílulas que representam sua decisão final de sair da Matrix podem ser uma pista. Azul para continuar na mentira ou vermelha para conhecer a verdade (Alô, Damares). Isso só na primeira meia hora, aí eu parei de anotar. Veja bem, essa é a primeira imagem do filme:
Assistir com isso em mente faz parecer até exagerado o tanto de pistas que são dadas, a ponto de me fazer pensar em quantas outras obras eu já vi sem entender muito bem do que tratavam. Não bastasse o sofrimento de saber que nunca lerei todos livros do mundo, agora tenho que pensar também que não voltarei a ler todos que já li.
Fiquei com isso uns dias na cabeça, pensando se as coisas que eu lembro de ter gostado eram mesmo legais, se teve algo que eu poderia ter gostado mais se visse com mais atenção… Mesmo sabendo que é só neurose minha. Por sorte, tem um perfil que eu sigo no twitter que basicamente serve para reforçar que nossa memória também tem a sua credibilidade.
O @CRTpixels publica imagens de jogos de videogame, comparando como elas ficam em telas como as que a gente usa nos computadores hoje em dia, e como ficavam nos monitores e televisores de tubo da época em que esses jogos foram criados, ou seja, como eu via quando era mais novo.
Passei muitos anos zombando do meu eu infantil por achar tão lindo alguns jogos que depois me pareciam montes de pixels mal resolvidos, volumes poligonais horrorosos e texturas absurdamente artificiais, e só vendo as comparações desse perfil fui entender que as imagens eram efetivamente mais bonitas na minha infância, que não era só o carinho que eu tinha pelos momentos em que podia jogar que me dava essa impressão. Então não preciso desconfiar de qualquer lembrança que pareça bonita demais.
Sobre o e-mail da semana passada, minha amiga Nayana escreveu um texto aprofundando a discussão sobre reconhecer as origens a partir do seu processo de aceitação da própria negritude. Eu achei muito legal, você ler no Medium dela clicando aqui.
E como sempre, obrigado por ter lido até aqui, obrigado de antemão por responder, comentar, levar o papo adiante. Até a próxima!