Por não saber como são as coisas - Sinto Muito #21
Você se identifica com as histórias dos outros?
Um par de lábios grossos e enfeitados com batom vermelho se abre o suficiente para revelar o afiado dos dentes incisivos e um mínimo fiozinho de saliva. A foto recortada em superclose abarca pouco além disso, não chega à ponta do nariz nem mostra o queixo por inteiro. Se destacam as narinas escuras e a pele cor de cobre que emoldura a boca, assunto principal. Sobre ela, o título: Luxúria, de Raven Leilani.
Se eu fosse julgar este livro pela capa, não teria lido. Seu estilão de pulp moderno me dava impressão de se tratar de um desses romances mais ou menos eróticos, mais ou menos adolescentes. Como vi muita gente falando a respeito e tive a oportunidade de pegar emprestado, fui ler. Ainda bem.
Luxúria conta a história de uma jovem, solteira e meio na pindaíba, que conhece um sujeito casado pela internet e acaba se envolvendo demais com ele e com tudo que o cerca. Me limito a essa sinopse sem vergonha porque não quero atrapalhar sua experiência de leitura. No caso desse livro, acho importante a surpresa de como as coisas vão se desenrolando, de como se parte desse cenário manjado e inofensivo para desembocar em elementos muito mais sombrios, sérios e delicados.
“Graças à minha época de artista virjona de ensino médio, muitas vezes estive próxima dos protótipos de meninas assim, meninas estranhamente obcecadas por gatos, meninas que usam mil patches e buttons e que subiam suas fotos para concursos de Suicide Girls no Mac transparente do laboratório de informática da escola, meninas que eram góticas suaves, que viviam na Hot Topic e na Torrid com seus namorados chorosos e pálidos, que às vezes se aventuravam pelo universo do anime e do D&D.”
Leilani usa muitas referências diretas a marcas, cultura pop e locais específicos em seu texto, e acredito que isso seja uma prática recorrente em literatura mais jovem, de se apropriar de significados ocultos que as coisas do cotidiano carregam. Quando a narradora diz que assiste Seinfeld em vez de apenas dizer que liga a tv, quando diz que olhou a vitrine da Macy’s ou que alguém “acha que descobriu o Portishead”, ela não explica o que tem de exato na sitcom, na loja de departamentos ou na banda que foram citadas, mas se você os conhece, você entende aonde ela quer chegar.
O que mais me encantou nesse sentido foi o uso narrativo que a autora faz de ambientes e interfaces digitais. Enquanto troca mensagens com o tal cara mais velho, logo na primeira página (e isso pode muito bem ter sido determinante para guiar minha leitura), ela diz que “O campo de texto vazio oferece inúmeras possibilidades.” Diz só isso, e traz implícito o descritivo da tensão de se ver obrigada a responder para manter o ritmo da conversa, o cursor piscando para te apressar a digitar logo. Mais adiante, essa ansiedade se repete com sinal trocado:
“Mando uma mensagem dizendo saudade, e quando vejo as reticências no meu celular sei que ele leu e está começando a responder. Mas aí ele não responde.”
Em outro dos meus momentos favoritos do livro, a personagem está conferindo um app de ciclo menstrual e se refere ao ícone de gota que indica os dias de menstruação como “a última lagriminha vermelha”. Uns anos atrás eu fiz minha monografia de pós-graduação pesquisando como a onipresença da internet a partir dos anos 2000 é refletida na forma do romance (na minha pesquisa, foquei em algumas obras do Daniel Galera), então sou meio suspeito para essa coisa toda de componentes de design como cenário da narrativa, mas pra mim é divertidíssimo.
Além desses recortes geracionais, há muita informação subentendida nas indicações de bairros e regiões dos EUA que são mencionados no presente e no passado da história, e que consigo absorver parcialmente pelo hábito de consumir bastante coisa de cultura norte-americana ao longo dos anos. Mais ainda, há um subtexto permanente sobre ser uma mulher e ser negra, sobre ser uma jovem mulher negra em Nova Iorque no século XXI. Como na vida real, a maior parte disso é dita em forma de você-sabe-como-é.
E aí está a grande porrada que este livro me dá. Nesse texto que fala tanto sobre identificação, eu sou o cara branco de 30 e tantos anos com quem a jovem se envolve, que coleciona discos de vinil e, não por acaso, é um bosta. E por mais que eu seja empático à dor do que ela relata sobre toda linhagem de sua família, por mais que o livro me toque e que eu termine a leitura emocionado, eu nunca vou saber.