A primeira vez que alguém me viu sem roupa depois da infância foi num grupo de teatro. Ensaiávamos bolar uma adaptação d’O conto da ilha desconhecida, do Saramago, e eu escrevi um epílogo em que despertava nu e cheio de hematomas cenográficos, caminhava até uma bacia com água e ia lavando as marcas de espancamento, para depois me vestir e sair de cena ao som de uma canção triste de indie rock.
Acabou ficando só no ensaio mesmo, por quaisquer razões o grupo se dissolveu antes de apresentar a primeira peça. Mesmo assim, penso que a minha brevíssima experiência no mundo da dramaturgia foi importante, aquelas reuniões eram uma espécie de método empírico de terapia para uma turma de adolescentes.
Essa historinha me pareceu um bom jeito de introduzir alguns assuntos que circundam Mr. Morale & The Big Steppers, o disco novo do Kendrick Lamar. Além da performance teatral, usando várias empostações de voz para representar personagens e cenas distintas, que já é uma marca registrada sua; o processo terapêutico de revirar seus traumas mais profundos é bastante defendido e praticado pelo rapper.
“Meu mundo é uma rua sem saída
Nosso mundo é ameaçador
Demônios se passando por religiosos
Acordo de manhã, outra consulta
Espero que o psicólogo entenda”
Como numa sessão de terapia, Kendrick não se esquiva de assuntos difíceis como a dificuldade em demonstrar vulnerabilidade, culpa do relacionamento com seu pai; a recusa à igreja por conta do tratamento dado a uma prima transexual ou o vazio do hedonismo e da ostentação do showbusiness, especialmente do rap.
Temas tão espinhosos quanto a coroa que traz na cabeça na foto da capa, que estampa ao lado de sua esposa e filhos, que também aparecem citados em várias letras e até dizendo algumas frases com suas vozes ao longo do álbum. A coroa faz uma óbvia alusão a Jesus e à ideia de ser uma voz para guiar e salvar a sua geração, mas essa ideia é tratada com ambiguidade: ora ele diz textualmente que “Kendrick te faz pensar, mas não é seu salvador”, ora apresenta sua narrativa principal como um sacrifício individual para a libertação de seu povo, tal qual o homem de Nazaré. Há um canto que emoldura o disco, abrindo com “Espero que você encontre algum paraíso” e encerra com “Me ame por mim, despi minha alma e agora estamos livres”.
Outra parte importante do processo terapêutico é encarar e entender o que se tem de pior e mais mal resolvido, algo que não se faz de uma hora para outra e normalmente exige uma série de tentativas frustradas. Kendrick já mostrou tentativas disso em faixas como “Fear” e “u”, em seus álbuns anteriores, e neste Big Steppers estende o esforço por várias canções, como ao falar sobre comprar compulsivamente tentando processar os lutos de sua juventude e ao retratar uma briga de casal que vai muito além de um desentendimento, que me deu uma sensação de constrangimento parecida com a de ler Um copo de cólera, do Raduan Nassar, que também narra um grande quebra-pau conjugal.
“Dave comprou um Porsche, então comprei um também
Paguei numa bolada, não preciso parcelar
O problema era a pobreza
Mas sequei as lágrimas com dinheiro
Eu lido com o luto do meu jeito”
E já que estamos falando de sinceridade, me encaminho para a conclusão revelando que isso tudo que eu falei são só primeiras impressões e que ainda sobra muita coisa a investigar neste Mr. Morale - Por que dessa vez Kendrick trouxe tantos convidados para rimar no seu disco? O que significam os solos de sapateado que acontecem entre uma música e outra? As partes destacadas por piano representam algum contexto específico? - Meu ímpeto de compartilhar essa audição a quente veio da empolgação com esse lançamento que eu esperava há anos e da metalinguagem de fazer um texto vulnerável sobre vulnerabilidades.
Me parece, ao menos por enquanto, que assim como Raul Seixas não queria que ninguém fosse raulsseixista (só ele poderia sê-lo, já que a proposta é cada um seguir a si mesmo), Kendrick não almeja nos salvar apenas encarando e exibindo seus próprios traumas. Mas sim, servindo de exemplo, incentivar cada um a buscar seu caminho de compreensão e cura. Busquemos.
Semana passada falamos sobre o coração, e aí um leitor grávido dessa newsletter comentou que na quarta semana de gestação um coraçãozinho de 2mm bate a 170bpm. É ritmo para deixar funkeiro com inveja.
E pra arrematar o assunto, o Kendrick Lamar também tem seu aforismo cardíaco em Mr. Morale & The Big Steppers:
“O coração bate de jeitos que a mente não pode entender.”
Até a próxima!