Dia 21 de março, ou seja, um mês e pouquinho atrás, comemorou-se o Dia Mundial da Poesia, data determinada pela UNESCO para dar voz à diversidade de expressões de arte linguística e etc. e tal. Por ocasião disso, teve um monte de editora oferecendo desconto em títulos desse gênero e eu aproveitei para comprar alguns.
Ler poesia não é uma coisa que necessariamente faz parte do meu dia-a-dia, apesar de eu ter alguns volumes aqui de que gosto bastante. Aproveitei essa aquisição de vários livros de uma vez para me forçar o convívio com eles, e infelizmente não estamos nos dando tão bem.
“Que te devolvam a alma
Homem do nosso tempo.
Pede isso a Deus
Ou às outras coisas que acreditas
À terra, às águas, à noite
Desmedida.
Uiva se quiseres,
Ao teu próprio ventre
Se é ele quem comanda
A tua vida, não importa,
Pede à mulher
Àquela que foi noiva
À que se fez amiga,
Abre tua boca, ulula
Pede à chuva
Ruge
Como se tivesse no peito
Uma enorme ferida
Escancara a tua boca
Regouga: A ALMA. A ALMA DE VOLTA.”Hilda Hilst, em Júbilo, memória, noviciado da paixão.
Mesmo autores que já mencionei anteriormente nesse espaço em tom elogioso tem me soado meio chatos. Sem querer ofender, digo isso da forma afetuosa como achamos chatos nossos amigos, às vezes. Quando alguém se empolga demais com uma história ou um acontecimento e fica forçando uma super importância para a situação.
Ler um monte de poesia de uma vez me dá um certo fastio, tipo quando a gente almoça sem estar com fome, de se alimentar só pela obrigação nutritiva do consumo de calorias.
“O empacado. O estorvo. A oclusão do fôlego. O entulho. A mumificação do crepúsculo. A roda dentada. A vastidão reduzida. Os freios para o pássaro. O rato em sua rota. O garfo. A flor inanimada. O dente canino. A tetrachave. A mosca. A procriação dos ponteiros. A tabela de pesos. A tarântula. O forno de gás. A ferrugem. O silêncio açulado. A paralisia afirmativa. O embrulho”
Ronald Polito, em Rinoceronte.
E não pense que eu tenha qualquer orgulho em dizer que não absorvo a poesia com naturalidade. Quem me dera ser melhor alfabetizado para as palavras contorcionistas dos poetas. Quanto mais eu passo por essas páginas sem entender nada do que elas querem dizer, mais me cubro de frustração, me sentindo como que fraco, magro de sentimentos.
Então esta confissão vai também como justificativa por eu não estar mantendo a frequência desses e-mails, por eu não ter muito assunto para falar sobre coisas bonitas e interessantes. Lembrando um meme, tem hora que parece até errado. O país nessa situação, tem gente passando fome e o cara querendo ler poesia. Pode?
“Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a lesma deixa risquinhos líquidos…
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma escorre…
Ela fode a pedra.
Ela precisa desse deserto para viver.”Manoel de Barros, em O guardador de águas.
Eu adoro as palavras, adoro idiomas e como a cultura se reflete na forma de articular os sons, de representar graficamente estes sons, e acho que tudo pode ser poético. Já teve um tempo em que o barulho de um helicóptero podia me deixar emocionado, mas agora é essa amargura embalando tudo ao redor como um plástico-bolha opaco que não adianta apertar que não vai fazer barulho nem causar relaxamento, só sufoca.
Penso que corro à poesia tentando enfrentar essa descrença que se impõe sobre os dias e, quem sabe, encontrar o alívio de uma pausa. Fitar a beleza outra vez, um pouco como um dependente que consegue segurar a barra de uma crise de abstinência. Quem sabe.
“o que fazer agora
com as mãos
cegas?o cigarro é parente
do lápiseram, afinal, gestos para nada
como na dança[…]
só amamos de fato
o que serve para nadamas as mãos mais do que nós
sabem o que fazem —
são desde cedo adestradas
no adeussó sinto falta de fabricar
minha própria nuveme de esperar em alguma esquina
fumando em pé
como um farol”Ana Martins Marques, em Risque esta palavra.
O país nessa situação, tem gente passando fome e o cara querendo ler poesia. Pode? Pode! Os que escrevem poesia, os que leem poesia, os que tentam entender poesia tornam a vida nesse país de fome e dor um pouco menos doloroso.