Opa, tá dando tempo de ler esses e-mails toda semana? Se não tiver, não se preocupe, eu entendo. Do meu lado também não estou conseguindo preparar os textos tão bem quanto gostaria, nem conferir as sugestões que vocês me mandam a cada semana. Tem podcasts, livros, séries, um tanto de coisa que estou anotando aqui e vou tentando tirar o atraso conforme conseguir manejar o meu tempo.
E falando em não ter tempo e em sugestões que recebi, tem um texto do Julián Fuks que saiu essa semana na Ecoa/UOL justamente sobre essa dificuldade de encaixar, nas nossas limitadas 24 horas diárias, todas as ilimitadas pretensões que temos como expectadores, escritores, familiares e cidadãos (e tudo mais). Se chama O novo problema do tempo: a pressa dos dias e a sensação de insuficiência.
O vocabulário é um tiquinho hermético, mas não chega a complicar a leitura não, é um artigo interessante para quem está, como eu, meio perdido no calendário. Você lê neste link aqui. Obrigado Renato pela dica.
“Sou um pai ausente enquanto busco o sustento, sou um marido ausente enquanto leio, sou um leitor ausente enquanto faço o jantar, sou um profissional ausente enquanto encontro os amigos, sou um amigo ausente enquanto escrevo. A soma dos tempos, que poderia levar a alguma totalidade e a algum apaziguamento, às vezes resulta apenas num sujeito cindido, a meio caminho de tudo o que desejaria ser.”
Há pouco assisti Só Dez Por Cento é Mentira (Direção de Pedro Cezar), um documentário desbiográfico do poeta sul-mato-grossense Manoel de Barros (1916-2014). Voando em direção oposta às nossas aflições contemporâneas, Manoel almejava a inutilidade, ser um vagabundo profissional, monumentar os desheróis.
O filme é muito inventivo em si mesmo, na mistura de recursose na seleção e montagem dos depoimentos de diversos admiradores do homenageado, mas evidentemente sua força maior está nas entrevistas do próprio poeta. Eu nunca li um livro inteiro do Manoel de Barros, conheço apenas alguns poemas avulsos, e ainda assim ouvi-lo falando me fez sentir genuinamente feliz. Ele fala de maneira totalmente encantada sobre sua vida e obra (e digo “vida e obra” porque é tudo a mesma coisa) e transparece uma paixão inacabável pela poesia, uma obsessão que o diverte a ponto de conservá-lo sempre na infância.
Entre uma fala e outra, o documentário é todo salpicado de versos dos poemas de Manoel, como “Ontem choveu no futuro”; “Borboleta é uma cor que voa”; “Só as coisas rasteiras me celestam” e outros tantos mais, que fazem qualquer expectador se sentir pertencendo também ao universo das Manoelices. Esse vídeo aí em cima é o trailer, e se te interessar você também pode ver o filme inteiro no youtube, clicando neste link.
Outro que eu assisti recentemente, e este já estava esperando eu encontrar um tempinho para ele há muitos anos, foi A Viagem de Chihiro (Direção de Hayao Miyazaki). Por qualquer motivo eu não assisti na época do lançamento, e agora no começo da pandemia, quando eu tava com a cabeça bastante embolada, uma amiga disse que me faria bem. Ainda demorei mais um ano, mas enfim assisti.
A princípio não estava me convencendo tanto, enquanto a história parecia uma metáfora mal disfarçada sobre crianças imigrantes em situação de exploração de trabalho. O filme me ganhou mesmo por volta de sua metade, numa cena em que Chihiro aprende que o mais importante de sua aventura é nunca esquecer o próprio nome, e em seguida ganha uma porção de bolinhos de arroz enfeitiçados para que não enfraqueça. Assim que morde os bolinhos, ela desata a chorar com lágrimas enormes escorrendo pela cara.
Essa cena foi muito marcante para mim, pela simbologia da comida afetiva, pelo destaque dado à necessidade de lembrar da própria essência, pela magia que não era magia nenhuma, era só afeto. Evitando mais spoilers (caso tenha mais alguém atrasado como eu em assistir esse filme), queria comentar apenas seu mérito raro de, ao fim da jornada, fazer a gente querer o bem de todos os personagens. E aí dá pra esquecer o que eu falei antes sobre metáforas, porque é uma invenção, como dizia Manoel de Barros. E poesia é melhor viver do que tentar explicar.
Na história de Chihiro há um dragão que luta contra folhas de papel, se a gente misturar as referências para descobrir mais poesia, é fácil saber que se trata de um animal da mesma espécie que a cobra de vidro mole, que é a maneira como Manoel descreve o rio que passava atrás de sua casa.
E misturando com o texto do Fuks, lá do começo, Manoel já tinha resolvido o problema do tempo em um trecho do seu poema Apanhador de Desperdícios:
“Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.”
Mais importante do que descobrir os significados é descobrir as insignificâncias.
Lembra que eu falei que o Nobel de Literatura tinha saído para um autor que ninguém no Brasil conhecia e que isso era uma oportunidade de alguém trazer suas obras pra cá? A Cia. das Letras já garantiu os direitos de publicação e promete quatro obras de Adbulrazak Gurnah em português já no ano que vem. Leia no Correio Braziliense
Como sempre, obrigado por inventar um tempo de me ler.
Até!