Então, estreou o Sandman, né? Eu ainda não vi, nem nunca li a HQ. Comentei isso com um amigo esses dias e ele recomendou efusivamente que eu visse logo, que é excelente e coisa e tal. Nem precisava tanto, eu já tenho vontade de ver (e ler, algum dia). O negócio é que essa obra parece mover as pessoas de forma bastante apaixonada: Em dado momento, meu colega foi elencando superlativos até concluir que Sandman é simplesmente a maior obra de arte da história da humanidade, e que seu autor Neil Gaiman ainda não é unanimemente considerado maior que Shakespeare apenas porque o bardo teve aí uns 400 anos de vantagem pra criar sua fama.
Eu é que não vou questionar a preferência de ninguém, o que me pegou foi a empolgação dele e esse ímpeto de deixar claro o quanto aquilo é importante. Na newsletter da Cláudia Fusco em que ela trata de Sandman também há menção a essa ser a sua ficção favorita de todos os tempos. Para quem está na mesma empolgação que esses meus amigos, recomendo a leitura desse e de qualquer texto da Cláudia. Mas eu não vim falar de coisas grandiosas, pelo contrário.
“imagina
uma coisa com peso de pluma
num canto perdido dum trem de minério
um acaso, uma história, lógica alguma
um brinquedo quebrado
um pequeno mistério”
Micro, oitavo disco de Mauricio Pereira, é um elogio à pequenez. Neste trabalho lançado em 2022, o cantor reinterpreta uma seleção de doze números de seu repertório, acompanhado apenas por Tonho Penhasco e sua guitarra semiacústica. O formato mínimo nasceu nos palcos, da necessidade de ter um show mais simples e barato, que viabilizasse turnês com apresentações em espaços mais intimistas. Durante a pandemia, ensaiando obstinados para as oportunidades de lives que e o que mais pudesse pintar, Mauricio e Tonho perceberam que haviam criado uma estética nova para aquelas canções, já não estavam só adaptando arranjos de banda para tocar a dois.
O álbum herda parte do nome de “Outono Micro”, o tal show em formato duo que rolava para divulgação de Outono no Sudeste, trabalho anterior de Pereira, mas apenas três de suas faixas. Micro traz um apanhado abrangente, pinçando representantes de desde o fim dos anos 1980, quando Mauricio formava dupla com outro guitarrista, André Abujamra, sob a alcunha de Os Mulheres Negras, no fervo da chamada Vanguarda Paulista, cena em que frequentavam Itamar Assumpção, Cida Moreira, Premeditando o Breque, Arrigo Barnabé e outros tantos.
Aliás, me lembro do alívio de descobrir esse pessoal. Quando comecei a me interessar por música, fiquei alguns anos frustrado por não ter representantes paulistas entre os músicos que eu mais gostava. Até as músicas mais tradicionalmente usadas para homenagear São Paulo eram sempre do Caetano ou do Tom Zé. (Na época, não custa esclarecer, eu ainda não tinha me ligado no rap e nem incluía o pagode no mesmo balaio que a tal da MPB. Cabeça adolescente…)
“deslocamento atômico
para um instante único
em que o poema mais lírico
se mostre a coisa mais lógicae se abraçar com força descomunal
até que os braços queiram arrebentar
toda a defesa que hoje possa existir
e por acaso queira nos afastar
esse momento tão pequeno e gentil
e a beleza que ele pode abrigar”
E é ótimo que um ajuste orçamentário tenha virado a situação que deu na gênese criativa de Micro, mas no fundo eu não consigo deixar de pensar que isso é alguma forma de injustiça. A Maria Bethânia e o Roberto Carlos não precisam ter uma versão mais barata dos shows deles para conseguirem excursionar por aí, sabe?
Não é que exista uma régua para medir quem é mais artista, nem muito menos alguma meritocracia que converta talento em venda de disco e plays no spotify. E o Mauricio também me parece estar bem de boa com o reconhecimento que ele tem. Injustiça muito maior é a da redescoberta póstuma, que já acometeu a tantas gênias e gênios da nossa cultura. Ainda assim, é frequente eu estar ouvindo alguma coisa dele e pensar que todo mundo precisava conhecer, que deviam ensinar na escola.
“e eu sonho sozinho
com meu coração pequenininho
minha compreensão também pequenininha
do conjunto das coisas todas[…]
e vem fé e vem tristeza e vem alegria
e tesão e neura e fantasia
e Dionísio e ditadurae eu não sei, não sei, não sei, não sei…”
Por isso eu quis mencionar o Neil Gaiman lá no começo e a forma inflamada com que as pessoas recomendam sua obra. Eu demorei pra escrever esse texto porque eu fico querendo falar que o Mauricio Pereira é meu grande compositor de música popular. E soa um pouco polemista quando seu autor favorito não é o Chico Buarque ou o Jorge Ben ou o Belchior, mas quê que eu posso fazer? Conversei disso com minha amiga Dani um dia desses e ela deu risada do meu dilema. De fato, quem dera nossas questões fossem todas assim, tão pequenas.
também não vi Sandman ainda, mas amei o diálogo que você fez com as músicas :')