Em setembro desse ano fui assistir a um show da turnê de despedida do Milton Nascimento. Até pensei em escrever aqui contando como foi, mas deixei a ideia de lado para evitar um texto de platitudes laudatórias. No êxtase de ouvir Milton cantar, é difícil concatenar algo de interessante para além de uma lista de superlativos.
Semanas depois, na ocasião de seu último show, realizado no estádio do Mineirão e transmitido pela TV, com direito a uma reunião dos membros do Clube da Esquina no palco, novamente quis falar sobre aquela experiência. Acabei deixando pra lá de novo.
Até que recentemente fui convidado a assistir a Clube da Esquina - Os Sonhos Não Envelhecem, espetáculo musical dirigido por Dennis Carvalho e inspirado no quase homônimo livro Os Sonhos Não Envelhecem, de Márcio Borges. Aí a possibilidade de falar dessas duas visões do que é Milton Nascimento me motivou a finalmente escrever.
Não é questão de comparar uma coisa com a outra, é claro. Presenciar a voz de Milton, a essa altura com mais de 60 anos de serviços prestados à música brasileira e universal, não é menos do que metafísico. A encenação de momentos de sua vida, portanto, pode ser grosseiramente comparado a uma montagem da via sacra em semana de páscoa, uma forma de louvar o milagre daquele cantar.
Ou ainda, assistir ao musical meses depois do show é um bom complemento, como essas séries de prólogo que hollywood faz aos montes, tipo Better Call Saul ou essa nova do Game of Thrones que está saindo agora.
Conforme o livro, a história da peça é um pouco menos centrada em Milton, oferecendo uma visão mais panorâmica do Clube da Esquina, com um justo destaque à amizade entre Márcio e Bituca. A caracterização e interpretação de todo elenco estava ótima e Tiago Barbosa teve uma performance impressionante no papel de Milton. A reação emocionada de Fernanda Montenegro, que viralizou nas redes sociais, não era exagero.
Um aspecto que me agradou na peça foi o destaque dado ao contexto impregnado nas canções, que às vezes passa batido quando a gente vai ouvir agora, meio século depois. Se em sua turnê A Última Sessão de Música, realizada no conturbadíssimo ano de 2022, Bituca apenas dizia “Viva a democracia”, elegantemente, perto do final dos shows, nos anos 70 Márcio Borges preferia abdicar da carreira artística para se dedicar à militância política.
Dessa época, são mostradas desde conjunturas gerais como a ditadura militar e o racismo eterno do Brasil; ocasiões específicas como o luto por Elis Regina e John Lennon; até circunstâncias pessoais como o alcoolismo que acometeu tanto Milton quanto Lô Borges, que assinam juntos o álbum Clube da Esquina.
Lô, inclusive, tem um papel curioso no espetáculo. Ele e Beto Guedes, por serem mais novos que o resto do pessoal do Clube, ficam com a função de alívio cômico, por vezes sacaneando a própria montagem. Tem uma cena em que Beto começa a cantar para animar Lô, que reclama “isso tá muito cafona”, e ouve como resposta “é que é um musical”.
E musical é isso mesmo, se deixar levar na gozação e na emoção. Se o espectador não colabora e tenta forçar uma quarta parede ali, imagino que atrapalhe. Embarcando na curva dramática, teve várias vezes entre as mais de 20 músicas apresentadas que eu pensei “essa é uma das que eu mais gosto”. Para citar agora sem pensar muito, as interpretações de “Menino”, “Um girassol da cor do seu cabelo” e “Caçador de mim” são exemplos de números em que me emocionei bastante.
Me senti tendo a oportunidade de vislumbrar um período que não vivi, ainda que através do filtro encantado do teatro, um mundo onde todo mundo canta super bem, incluindo aqueles que na vida real são mais fortes como compositores ou instrumentistas, e até familiares e conhecidos do grupo. Uma chance de ver músicas lendárias sendo criadas, de presenciar apresentações históricas como o lançamento de “Travessia” no Festival Internacional da Canção de 1967.
Eu já tinha visto Milton Nascimento em pessoa cantando, em um show público na ocasião do aniversário de São Paulo, em janeiro de 2010, junto com Lô Borges. Lembro de ter tratado aquela possibilidade como única, por ser um encontro dos dois celebrando o Clube da Esquina e por ser de graça, que era mais ou menos a faixa de preço dos shows que eu topava nessa época. É uma alegria pensar que nesse ano que vai acabando eu pude não só vê-lo de novo, no que promete ter sido sua última excursão pelos bailes da vida, como nessa outra celebração que também teve sua benção, através do elenco de Clube da Esquina - Os Sonhos Não Envelhecem. Não mesmo.