O primeiro plano de American Symphony, documentário dirigido por Matthew Heineman, mostra Jon Batiste diante de um riacho em um campo nevado. O músico hesita um pouco, depois se equilibra sobre um pequeno tronco para chegar ao outro lado. São poucos segundos de cena, que encapsulam bem a ideia do filme, da necessidade de atravessar o que for preciso.
Jon é um compositor, cantor e pianista que eu conheci como líder da banda de palco do The Late Show, desde que o programa passou a ser tocado por Stephen Colbert em 2015, sucedendo o lendário David Letterman. Além do talento musical, sempre me chamou atenção o bom humor e positividade do band leader, tanto no programa quanto em outros materiais com que fui tendo contato e que recomendo que você veja quando puder, como o vídeo dele testando quinquilharias musicais para a Wired, ou ele falando sobre música de videogame para o Washington Post, ou ainda sua performance no Tiny Desk da NPR (um dos meus episódios favoritos). Daí minha curiosidade para ver o filme, em que o diretor o acompanha ao longo de meses, durante um período em que Jon lida com altos e baixos que são bastante altos e bastante baixos também.
O título, American Symphony, é absorvido de uma ambiciosa composição em que ele estava trabalhando para apresentar no Carnegie Hall, com intenção de abarcar elementos de diversas tradições musicais negras, indígenas americanas e do que mais formasse algo como uma identidade musical contemporânea do país. Fora a responsabilidade de liderar dezenas de músicos, há implícito nessa proposta a pressão de se contrapor ao discurso separatista, higienista e até supremacista que comandava o país sob Donald Trump na época. Mas não é só isso. Entre outras questões, Jon estava recebendo o prestígio de ser recordista em indicações ao Grammy com seu álbum We Are e sua trilha sonora para o filme Soul, da Disney/Pixar. Ao mesmo tempo, sua companheira Suleika Jaouad (autora do bestseller Memórias de uma Vida Interrompida, entre outros) é diagnosticada com a volta de uma leucemia que havia tido remissão anos antes. É um período muito duro e o filme registra e revela a união do casal nessa jornada de forma muito tocante.
Suleika é uma mulher fascinante em sua disposição de interpretar a vida criativamente, processando e expressando a dor da luta contra o câncer através de textos e pinturas. A certa altura do filme, Jon diz que o que mais admira nela é sua forma de lidar com as adversidades. Ela, em outra cena, diz que o melhor no companheiro é sua capacidade de se transformar e melhorar.
Mesmo sabendo dessas dificuldades e que o documentário mostraria momentos de dor e tristeza dos personagens, eu ainda me admirei de ver cenas em que Jon aparece irritado com críticos de jornais; reclamando com sua terapeuta de que não aguentava mais trabalhar; sofrendo um ataque de ansiedade. Eu não sei quanto os retratados já conheciam o diretor e demais realizadores até então, mas o acesso que dão a eles é de uma intimidade brutal. O mais interessante para mim é que esse contraponto à persona de palco não faz parecer falso o sorriso e as afirmações recorrentes que Jon faz em suas performances, tipo “seja você mesmo”.
Ele inclusive fala de como artistas negros historicamente são reduzidos ao papel de animadores acríticos e tudo mais, mas aqui é uma questão de conscientemente escolher transmitir positividade, de entregar alegria em contraposição ao ódio e niilismo crescentes nos EUA e no mundo. Poder presenciar o esforço envolvido nessa entrega (ao contrário da naturalidade que se pode imaginar vendo apenas suas aparições públicas) faz tudo ter ainda mais valor. O filme faz algo que toda boa obra de arte quer e pode alcançar de forma mais ou menos direta: Nos estimula a melhorar.
Um outro vídeo do Jon Batiste que eu gosto muito é essa interpretação de What a Wonderful World, classicaço de George David Weiss e Bob Thiele eternizado por Louis Armstrong, mas que eu mesmo só fui prestar atenção na letra e achar bonita quando ouvi na voz do Jon. Tira cinco minutinho aí e escuta com carinho.
“As cores do arco-íris
tão lindas no céu
também estão nos rostos
de quem passa por aí.Vejo amigos apertando as mãos
e dizendo ‘como vai você?’
o que eles estão dizendo mesmo é
’eu te amo’.”
Que 2024 seja uma boa travessia para você. Feliz ano novo.
Feliz ano novo também. E obrigado pelo texto.