Nunca fui de grifar livros. Por algum tempo eu copiava trechos que achava legais e postava no facebook ou no instagram, só peguei o costume de marcar coisas possivelmente úteis quando inventei de fazer uma pós-graduação em 2018 e acabei tendo que escrever uma monografia sobre literatura. Hoje em dia eu anoto os trechos que podem servir para colocar nesta newsletter.
Lendo A Boa Sorte percebi que estava fazendo mais marcações que de costume, então é provável que esse texto acabe tendo mais citações também. Na verdade, logo na primeira página eu já tive de destacar um trecho, em que sem recorrer a clichês ou nomear explicitamente a situação, a autora Rosa Montero mostra que seu protagonista é um homem deprimido. Isso antes mesmo de introduzir o insólito roteiro, em que uma figura de renome em sua área de atuação profissional subitamente resolve recomeçar a vida como anônimo no minúsculo povoado fictício de Pozonegro.
“E, no entanto, não é feio. […] Olhando bem, esse homem deveria ser chamativo, atraente, o típico varão pode roso e consciente do próprio poder. Mas nele há algo deslocado, algo fracassado e errôneo. Uma ausência de esqueleto, por assim dizer. Isto é, uma ausência completa de destino, que é como andar sem ossos.”
Quando fiz minha tal pesquisa acadêmica, que foi sobre como a onipresença da internet em nossas vidas se reflete no texto de romances, mencionei o livro anterior de Rosa, A Ridícula Ideia de Nunca Mais Te Ver, por emular uma estrutura de timeline (que a grosso modo é um diário, mas tem lá suas particularidades de multimídia, intenção de ser lido por outrem, etc). Este A Boa Sorte, pode-se dizer, está mais para feed: um caleidoscópio de pontos de vista distintos que formam a história.
Alguns personagens falam ao leitor em primeira pessoa, outros são apresentados em discurso indireto livre, com narrador onisciente contaminado por suas impressões e opiniões. Ou seja, o tom da narração varia mesmo entre os personagens apresentados em terceira pessoa. Quem não aparece com a própria voz, eu suponho, é quem está olhando a trama de fora para dentro. Ironicamente, o protagonista é um desses.
“Regina repete para si mesma, estupefata enquanto contempla no Google Maps a maldita rua Resurrección, o maldito edifício número 2, o segundo andar com sua varandinha de nada, enfim, a absoluta feiura do Cu do Mundo. Por outro lado, não é incrível que o Google Maps tenha a imagem desse lugar perdido? Nem mesmo o Cu do Mundo é Terra Incognita? Entre admirada e espantada, Regina move com os dedos as flechas direcionais e percorre novamente a mísera rua. Mas como é possível, e por quê? Para Pablo, viver ali deve ser como estar no inferno.”
O enredo tem um quê rocambolesco de telenovela, com núcleos se entrecruzando, personagens novos surgindo o tempo todo e mistérios que se prolongam costurando a narrativa, formada majoritariamente por capítulos bem curtos, que não chegam a meia dúzia de páginas cada. Isso pode dar uma embaralhadinha na cabeça, mas também possibilita que se leia o livro em sessões rápidas, espalhando a leitura pela sua rotina.
“Até o laser que lê os códigos de barra empalideceu: já não é vermelho-brasa, mas rosa-aguado. Pip, o leitor apita diante da bandeja de cogumelos. De repente, Raluca odeia a bandeja de cogumelos. Odeia também o cacho de bananas ao lado dela e os rolos de papel-toalha. Não suporta ter que continuar passando a compra dessa senhora tão feia. Mas continua. Pip, pip, pip. Trinta e dois euros e sessenta centavos.”
Em termos temáticos, no fim das contas, é um livro sobre o mal (o título vem de uma ironia que se repete até a vulgarização), e por isso pode ser um pouco duro de se ler. Eu mesmo levei mais tempo do que imaginava para terminá-lo, ainda que a cada página o texto de Montero me impressionasse mais. É até corajoso da autora abordar alguns dos comportamentos mais nefastos da humanidade em uma trama que se estabelece em um cenário de cotidiano tão banal. O negócio é que Rosa escreve muito bem sobre tudo, então intensifica tanto os momentos de ternura quanto os de horror, e até suas confusas sobreposições.
“O rapaz jovem, que não disse palavra alguma durante todo o encontro, inclina a cabeça e volta a lhe endereçar um sorriso de aterrorizante doçura. Em seguida arranca, desenhando um amplo semicírculo no solo para mudar de rumo. […] A arma usada para ameaçá-lo era um canivete retrátil, e no carro, atrás do motorista, havia uma cadeira de bebê, lembra Pablo.”
Para honrar a obra e não cair em fatalismos, talvez seja melhor dizer que é um livro sobre como lidar com o mal, que inevitavelmente está sempre por aí. Como enfrentar, quando se esquivar, quais gestos de amor e camaradagem podem contrapor o horror. Nesse século XXI que vai tomando formas estranhas, é uma leitura necessária.
No texto em que falo do Guia Fantástico de São Paulo eu fiz menção aos passarinhos que acordam de madrugada, dizendo equivocadamente que isso se dá pela iluminação da cidade. Minha amiga Verônica me explicou que na verdade “eles precisam se comunicar no intervalo em que os ônibus (e carros e tudo o mais) dão um tempo, para conseguirem ouvir e serem ouvidos.”
Também por conta desses passarinhos paulistanos, minha amiga Elis lembrou de mim ao ver um tuíte do escritor americano Jeff Goins:
“Sabe por que os pássaros cantam na hora que vai amanhecer? Cientistas acreditam que é para contar a seus colegas que eles sobreviveram à noite, como uma forma de dizer: ‘Ainda estou aqui’. Talvez seja por isso que cantamos também, que criamos arte — como uma forma de dizer: ‘Eu consegui. Ainda estou aqui’.”
Isso é combater o mal.