Nesses últimos dias, por coincidência, me vi contando meu tempo de amizade com algumas pessoas em contextos diversos. “Já somos amigos há onze anos”, me disse um parceiro com quem tinha um site e podcast; “que engraçado ter essa conversa depois de dezessete anos”, uma companheira de curso da faculdade; “você me conhece bem, já faz vinte anos”, um que estudou comigo no colégio. Essas coisas ficaram ecoando na minha cabeça.
Minha vida social mudou completamente nesses últimos anos. Eu morava com a namorada e agora moro sozinho. Trabalhava diariamente no escritório e agora, quando trabalho, é de casa. Fui furtado e assaltado e reativei alguns traumas que julgava superados, também por conta do clima de estado de exceção e, obviamente, da pandemia. Ainda tenho certa dificuldade para reencontrar amigos e manter contato como gostaria. No último sábado fiz aniversário e minha comemoração no dia foi abrir uma caixinha de perguntas no instagram para que as pessoas mandassem mensagens. Acabei recebendo mais felicitações do que esperava, algumas até me surpreenderam.
Mais tarde, pensando nisso, me lembrei de uma cena de Smartless: On The Road, série que assisti há pouco. Logo conto mais, mas essa cena específica mostra três atores bem-sucedidos da televisão americana conversando entre si sobre a perplexidade diante do fato de que milhares de pessoas saíram de suas casas e pagaram ingressos para vê-los ao vivo em um teatro.
A série documenta os bastidores da primeira turnê de apresentações ao vivo do Smartless, podcast de entrevistas apresentado por Jason Bateman, Sean Hayes e Will Arnett. O que talvez seja mais esquisito é que eu quis ver a série, sendo que nem acompanho o podcast. O caso é que me pegaram num momento de querer acompanhar alguma coisa confortável, e por conhecer Bateman e Arnett desde quando contracenaram na incrível Arrested Development, imaginei que seria bacana acompanhar sua convivência enquanto viajam a trabalho. (Bateman também é o protagonista de Ozark, Arnett faz o personagem título de BoJack Horseman, e Hayes é mais conhecido por ser do elenco principal de Will & Grace)
E a série evoca muito essa ideia de intimidade, desde os diálogos que escolhe mostrar, até a trilha sonora, passando pela fotografia toda em preto e branco que reforça o ar de nostalgia. Parece uma produção que quer ser vista como algo que faz bem a quem assiste, uma coisa meio terapêutica. Dentro do possível, acho uma proposta honrosa, e me serviu.
Inclusive, acho que todo mundo tem algumas predileções nesse sentido; aquele filme, poema ou canção que é um santo remedinho, que ajuda nos momentos mais difíceis. Um desses a que eu recorro quase como um feitiço, e que precisei usar outro dia, é o disco Mafaro, do André Abujamra. Segundo o André, Mafaro quer dizer alegria em uma língua que se fala no Zimbábue, e nomeia este trabalho que é sobre “aceitar” a alegria. As aspas são minhas, porque não é só questão de aceitar algo que lhe é oferecido. O que o Abu propõe é que a gente seja feliz através de uma busca ativa, que se tome a responsabilidade de se esforçar para encontrar a alegria quando ela tenta se esconder da gente.
Com aforismos fortes e provocativos como “O mundo de dentro da gente é maior do que o mundo de fora da gente” ou ainda “É mais fácil ser triste que alegre”, o álbum constrói um universo muito original e rico, ainda que a partir de uma epifania mais ou menos batida, de que tem gente em África que transparece alegria apesar de sofrer com a desigualdade global. Musicalmente, a influência do afrobeat se mistura com a formação ocidental, o pop e a bagagem trilheira do Abu, aliado a parceiros que vão do Luiz Caldas ao Evandro Mesquita, passando por muitos outros que não vou me alongar listando.
“Logun, que bom que é
Viver na alegria
Entender a dor
Porque ela serve pra gente ser feliz depois”
Outra sequência que me marcou em Smartless foi uma em que os três apresentadores falam justamente sobre enfrentar a negatividade que nasce na gente. Hayes, falando da dificuldade de ter sido abandonado pelo pai, crescer dividindo a casa com vários irmãos e as apreensões de se entender e se apresentar como gay, diz que encara seus desafios com bom humor por falta de opção. Os outros, a seus modos, também contam no que pensam para não se deixarem tomar pelo ímpeto de reclamar da vida e se abater.
Claro que ninguém é o único responsável por se sentir bem e que estar feliz ou triste não é só questão de escolha. Saúde mental é coisa séria e ajuda profissional deveria ser um direito universal. O que falo aqui e que, segundo meu entendimento, falam essas obras, é sobre um tipo de postura, algo como exercícios que podemos fazer na superfície que está ao nosso alcance individual. Da minha parte, escuto o Mafaro como uma forma de rememorar a felicidade de ter visto seu show de lançamento, em 2010 lá no auditório do Ibirapuera - um show a que fui sozinho e de ouvidos e coração abertos, porque nem tinha como conhecer o repertório - Para me lembrar de ativamente perscrutar a alegria.
A imobilidade é um sintoma depressivo que me afeta com uma frequência mais do que indesejada e traz consigo uma autoculpabilidade corrosiva. Escrevo esse texto num dia em que cancelei alguns compromissos, como uma forma de enfrentamento a essa condição. Em certa medida, quando publico algo aqui, também me sinto reencontrando você, que me leu até aqui. É um caminho.
vai se ferrar, que texto
que texto lindo, rafa! assim que li o título na minha caixa de entrada lembrei da música do jards macalé.
"mas eu já morri e volto pra curtir"
e parabéns de novo!