Por essa situação crônica - Sinto Muito #2
Vou te contar uma coisa que tá na minha cabeça faz um tempo.
Opa, tudo sob controle por aí?
Por aqui tudo certo. A inauguração desses e-mails na semana passada me deu uma boa animada! Outro dia estava contando para uma pessoa sobre isto e ao explicar que abordagem e tipo de assunto quero tratar por aqui, ela respondeu: Então são crônicas? Não são, mas essa palavra me lembrou de uns pensamentos que tive uns meses atrás, lendo crônicas.
Mais especificamente, uns pensamentos que eu tive quando calhou de eu ler em sequência Uma Estranha na Cidade (Ed. Dublinense), publicado pela Carol Bensimon em 2016, e Os Ricos Também Morrem (Ed. Planeta), que o Ferréz lançou em 2015. Importante notar as datas de lançamento, já que a crônica, como a etimologia sugere, é o retrato em texto de um determinado tempo – Ainda que não precise ser apenas um instante, nem ser o tempo dos relógios e calendários.
E se esses dois livros registram um tempo muito próximo, o ângulo que cada um usa para fazer o retrato é bastante diferente. Carol fala de um ponto de vista mais privilegiado, tipo classe média alta universitária. Discute mobilidade urbana, sustentabilidade, a influência da tecnologia no cotidiano, o preço do Moleskine – “11,50 euros por um modelo padrão” – tudo de forma bastante perspicaz e bem articulada, em sintonia com o que repercute entre os jovens adultos preocupados com o próprio zeitgeist, ou “na bolha”, como ela mesma diz.
“Eu quero ir a lugares caminhando, mas ela joga as chaves do carro no meu colo. Ela tenta me seduzir com filmes argentinos, pães da Barbarella, um fim de tarde no Iberê, a floração das paineiras, mas não quer nem ouvir falar dos meus argumentos contra a duplicação da Beira-Rio. Um belo dia, eu elogio a arquitetura de um prédio dos anos 50 e, no outro, com uma risada meio sarcástica de filme B, ela encontra uma fresta nos recém-colocados tapumes e me mostra uma montanha de entulho. Porto Alegre é assim. Então eu sento na sacada, olho para a figueira centenária que está na minha frente e respiro fundo.”
Também demonstra um repertório antenado, citando sempre uma série de livros, documentários, programas de rádio e revistas como The Atlantic e Newsweek. Se o leitor estiver de má vontade pode soar até um pouco assoberbado.
“Estou lendo atualmente um livro recém publicado nos Estados Unidos, Places of the heart, do neurocientista Colin Ellard. Ele escreve sobre natureza, cidades, locais de trabalho e casas partindo do ponto de vista científico.”
Já Ferréz fala de um ponto de vista mais periférico, preocupado com a ligação de energia elétrica no bairro, se vai dar pra ir até o sacolão e voltar sem tomar um enquadro sem motivo, se o patrão vai pagar direito pelas horas trabalhadas.
“Lembrou da confusão naquele dia. O cara que invadiu. Disse que não recebia nunca o que o patrão devia. Sacou a arma, todo mundo correi. Chamaram quem só protegia quem tinha, eles bateram nele com força e covardia. O homem só não recebeu o que merecia, foi encaminhado à delegacia. Assinou papéis que ele não queria.
O patrão contava para os amigos com ironia. Manda ele provar que trabalhou tudo isso, povo ingrato, disso eu não preciso.”
Oficialmente os textos de Os Ricos Também Morrem são contos, mas eu acho justo também se considerar como crônicas por algumas razões: O texto é tão natural e bem ritmado que parece uma conversa, o que para crônica é um bom elogio. No prefácio Ferréz conta que memorizava estes textos e apresentava por aí em saraus, escolas, palestras, para testar e aperfeiçoar seu material. Sua literatura de histórias engenhosas a ponto de convencerem o leitor (ou ouvinte) que apenas relatam a realidade o Brasil. “Com a cara do povo”, como o autor diz.
“Em lugares nunca pisados por nenhum futuro herói da literatura brasileira (...) fazer literatura para quem nunca teve sequer um primeiro contato. É para esses que escrevo.”
Também é importante que eu os tenha lido já neste ano de 2021, porque se eu lesse lá em 2016 me veria mais no livro da Carol, ainda que não tenha referências pessoais como “um cinzeiro do Stardust Hotel em Las Vegas, que meu avô pôs sorrateiramente no bolso em 1978”. Os meus avós não viajavam de avião, nem os meus pais. Foi na minha geração que a família experimentou frequentar aeroportos, para ficar no exemplo mais batido do que estou querendo dizer. Porque nessa época eu também vivia esse alargamento de horizontes e essa efervescência de consumo, então consigo me identificar com a cisma bem humorada que ela desenvolve por sabores patenteados, tipo sorvetes de Galak e panetones de Alpino, por exemplo.
Por outro lado, o livro do Ferréz serviria mais como uma recordação de alguma cena que eu vivi nos anos 90, como na sua história do garoto que vai à feira trocar uma panela velha por um pintinho tingido de lilás. A memória dos bichinhos com as penas coloridas estava adormecida na minha cabeça há anos e não vou negar que abri um sorriso quando apareceram na história. Na página seguinte, como em tantas páginas desses contos, o sorriso retraiu.
Mas daí tem o isolamento social, a crise em que estamos agora, e alguns temas dos contos/crônicas do Ferréz se parecem muito com o que passa no noticiário todo dia sendo alardeado como O Novo Normal. Ou seja, muito do sofrimento que alguns vieram a experimentar momentaneamente na pandemia já era a realidade básica para outra parcela da população.
Pensa bem, o que doeu em você por ter que se isolar em casa? Falta de opções culturais? Isso já não existe em muitos espaços periféricos. Não poder ir num restaurante bacana? Não poder viajar? Adivinha. A chateação de ter que ficar calculando preço dos alimentos, já que tá tudo muito caro? Isso é obviamente a rotina de quem vive com menos dinheiro. E qual a sensação mais escandalosa que tivemos nesse período? O que mais vai contra qualquer lógica de nação e democracia? O Estado parece querer nos matar! Como que pode? Mas pois é, para um bocado de gente isso também é só mais um dia na vida.
É um pouco sintomático que tudo que a gente vivencie nesses últimos meses, mesmo o que foi criado muito antes, ganha uma camada de interpretação pandêmica. Até os títulos desses livros que estou comentando hoje me lembram disso. Uma estranha na cidade é como qualquer pessoa se sente quando subitamente tudo passa a representar um perigo de morte, até apertar o botão de um semáforo. E dessa vez, afinal, os ricos também morrem. Naquelas. A evolução da covid é diferente aqui perto do centro da cidade, onde eu moro atualmente, e no Sapopemba, lá na Zona Leste, bairro onde eu cresci e onde mais se morre de covid na cidade. Até nisso.
Na área médica também existe o conceito de cronicidade. As dores, por exemplo, se dividem em dois tipos: tem as dores crônicas e as dores agudas. Agudas são aquelas que vem de repente e te pegam de surpresa. Uma queimadura, uma fratura, um infarto. A dor crônica é diferente, você já a conhece, fica doendo o tempo todo independente do que você faça. Está sempre lá.
Como falei lá no começo, fiquei muito contente com o carinho que recebi pelo texto da semana passada. Agradeço demais a todo mundo que leu, quem veio conversar comigo sobre e quem respondeu comentando também. Eu mando o e-mail para várias pessoas ao mesmo tempo, mas se você responder vem só para mim, então a gente pode ir trocando ideia.
Para quem se interessou pelo livro que eu mencionei, O Deus das Avencas, a Cia. das Letras fez uma live com o Daniel Galera e o Sidarta Ribeiro batendo papo sobre ele, tem vários pontos interessantes.
E já que retomei brevemente o papo do fim do mundo, e já que ainda estamos aqui, me despeço com uma canção de Assis Valente na interpretação impecável de Leci Brandão.
Até a próxima!