Recentemente se falou muito da propaganda da Volkswagen estrelada por uma versão digital da saudosa Elis Regina - Se não viu essa discussão, te invejo - e há muitos pontos interessantes que podem surgir disso. Não vou me alongar aqui falando por que não gostei do anúncio, mas é inevitável que novas tecnologias hiperpotentes de processamento de dados estão aí para ficar.1
Se você acompanhou temporadas passadas desta newsletter, talvez se lembre de eu ter mencionado meu interesse pela contaminação da linguagem literária por assuntos da internet e tecnologia em geral, que trabalhei isso na minha monografia de pós-graduação e tudo mais. Por isso, foi irresistível me interessar pelo livro O Inconsciente Corporativo e Outros Contos, de Vinícius Portella, que tem a realidade contemporânea superconectada como cenário para os temas universais em suas narrativas.
Para falar de amor e aceitação o autor parte do Tinder; para falar de desigualdade e privilégios, contos sobre startups modernosas de NFT e criptomoedas; para tratar de literatura e do ofício criativo, o mote é a criação através de inteligência artificial. Explorar esses temas assim a quente é difícil, porque há um risco considerável de cair na caricatura óbvia, mas Vinícius consegue evitá-lo mesmo nos momentos mais ácidos de sua narração.
“O pai ri da ingenuidade daquela visão, que sabe que o filho tomou parte de Adam Neumann, o fundador da WeWork, assim como de Steve Jobs, Elon Musk e outros grandes magnatas da tecnologia. Já percebeu que seu filho consumia muito mais biografias e reportagens sobre essas figuras que qualquer material técnico sobre economia ou administração.”
Voltando à discussão acerca do comercial da Kombi, ela toma rumos confusos quando, para questionar a recriação da fisionomia da cantora como garota propaganda, se quer confabular qual seria a opinião dela sobre o assunto, o que também não passa uma projeção, ainda que menos visível. Não só dela, mas também de Belchior, o autor da canção tema “Como Nossos Pais” que traz o implacável verso “é você que ama o passado e que não vê que o novo sempre vem.” A suposição do que Elis acharia de participar de uma propaganda de carro, em um mundo indiscutivelmente diferente e um tanto quanto mais acelerado do que o ela conheceu até sua morte prematura 40 anos atrás, é muitas vezes contaminada por idolatria, crenças políticas e pela forma como sua imagem foi passada de geração a geração com uma carga simbólica enorme (que também é, no mínimo, parte do motivo da Volks contratá-la do além como garota propaganda).2
O Inconsciente Corporativo também aborda, em certa medida, a questão ideológica desse universo. Um de seus protagonistas é moralmente indiferente às consequências do que o faz enriquecer, outro mistura idealismo com performance e acaba criando uma espécie de exército particular e perdendo controle sobre ele - tudo desgraçadamente verossímil de se ler. E acho importante destacar que a sensação que isso causa é diferente daquela que temos com obras de ficção especulativa, como 1984 ou Black Mirror. Em seus melhores momentos, os contos de Portella são simplesmente realistas.
“Ele ri muito e diz que havia mentalizado aquele acontecimento, que realmente era só acreditar que as coisas sempre davam certo no fim. O amigo acha graça, mas concorda. E só quando Mateus repete o que acabou de ouvir do tio, um pouco constrangido, […] é que ele próprio entende que acabou de descrever um esquema de lavagem de dinheiro”
Sobre inteligência artificial, não é dito se algo dos textos foi gerado com recursos desse tipo de ferramenta, apesar disso ser abordado de forma central em ao menos um dos contos. Há até algum senso de justiça poética (ou vingança?) na hipótese do autor humano estar emulando o que seriam os resultados de um computador que tenta escrever um texto de ficção.
Na crítica literária, especialmente a acadêmica, há quem se preocupe com a menção a tecnologias mais recentes com o pretexto de que isso pode deixar o texto datado ou perder parte do sentido para gerações futuras. Com efeito, quando li O Inconsciente Corporativo nas primeiras semanas desse mês, achei graça no fato de alguns contos falarem do Twitter, rede que então estava sendo dada como morta pelo surgimento do Threads, seu clone com a marca do Instagram. A volatilidade desses assuntos até me fez desanimar um pouco de publicar esse texto, que ainda estava em gestação quando a polêmica em torno da Elis Regina deepfake foi esfriando. Mudei de ideia ao ler nessa semana a edição #26 da newsletter da Clau Fusco, em que ela também traz esse assunto e diz que a indignação com o comercial vem porque ”o passado é um território que sempre teremos para brincar — e há algo de sagrado, cerimonioso, nisso.”
E quanto à tal preocupação, me parece exagerada. Hoje ainda lemos - e até escrevemos! - romances sobre o tempo em que as pessoas só se comunicavam por cartas, ou por telefonemas, ou pelo velho Orkut. Os contos do Vinicius e quaisquer outros que se situem na realidade de redes sociais também sobreviverão, contanto que, no fundo, sejam sobre humanidade.
“Um dia, enquanto esperava alguma coisa, sem querer, abri [o Tinder] achando que era o aplicativo do banco. Em minha defesa: ambos eram representados por foguinhos vermelhos; o que afinal faz todo sentido, suponho, pra aplicativos dedicados a dinheiro e sexo (as duas principais tecnologias do desejo).”
Exemplos do uso de IA para obras de arte incluem os videoclipes de The Heart part 5, de Kendrick Lamar, e A Cada Olho Um Olhar, de André Abujamra.
Vanessa Ferrari, em seu livro O Lugar das Palavras, traz uma boa definição do “fenômeno contemporâneo da leitura ideológica, quando sai o debate e entra o grito, com argumentos que nada tem a ver com o raciocínio de origem, num círculo colérico de temas paralelos que podem se expandir ao infinito.”
levei um susto quando vi meu nome aqui! hahaha brigadão! E que edição linda, e que vontade que deu de ler esse livro!!