O que é deus? Não tem uma definição muito exata, e no dia-a-dia a gente usa essa palavra em tantas expressões que acaba virando só uma interjeição. Há quem use em maiúscula para se referir a Javé ou Jeová ou algum outro deus específico, há o uso como substantivo, como fiz algumas palavras atrás, e naturalmente também há as definições poéticas. Tem uma música do Emicida que diz que “Deus era uma mulher preta”, já o Pato Fu canta que “Deus está no sinal vendendo chiclete”1, tem aquela do Chico que diz que “Deus é um cara gozador e adora brincadeira”2 e por aí afora. É mais ou menos disso que se trata Deus Deus, lançamento de estreia da Livraria Gráfica.
A Livraria Gráfica é a nova expressão da parceria entre a editora Lote 42 e o estúdio de design Casa Rex, que já trabalham juntos há vários anos ajudando a popularizar a discussão sobre o formato do livro nesse tempo pós-kindle, em obras como Inquérito Policial: Família Tobias, de Ricardo Lísias, que é encartada simulando uma pasta de investigação policial; ou Lululux, de Gustavo Piqueira, que traz sua narrativa fragmentada e impressa em guardanapos, jogos americanos e porta-copos.
No caso de Deus Deus, acho importante destacar que a experiência gráfica é cuidadosa desde a sacola serigrafada, a embalagem engenhosa que embrulha o livro apenas dobrando uma grande folha de papel sem etiquetas ou cola, até, claro, o miolo do livro, que tem páginas de tamanhos diferentes, folhas em papel azul quando vai falar do twitter e uma intervenção a carimbo como complemento do colofão.
“À parte seca DEUS chamou Terra; e ao ajuntamento das águas DEUS chamou Mares; e viu DEUS que era bom.
DEUS me livre assistir a fazenda”
Seria razoável dizer até que se trata de um livro-de-artista ou livro-objeto, substantivos compostos desajeitados que a gente usa pra falar de obras que estão mais no campo das artes plásticas mas partem do formato do códice - o modelo tradicional do livro encadernado - e costumam ser peças únicas como quadros ou ter tiragens baixíssimas, como gravuras e esculturas fundidas. Essa é outra provocação que a Gráfica levanta: os livros são produzidos de acordo com a demanda de pré-venda e depois se promete que não serão reeditados nunca mais, chegando numa espécie de livro-performance.
Claro que não vamos falar só do modelo de negócio da Gráfica, afinal o livro tem seu conteúdo de texto. Mais ou menos apócrifo - creditado apenas a Deus e ao twitter - o corpo da obra é preenchido por trechos intercalados do livro bíblico do Gênesis com buscas pela palavra Deus na rede do passarinho azul no dia 13 de setembro de 2020. Pois é, o livro começou a ser produzido faz tempo, e foi uma das milhões de coisas um pouco postergadas pela pandemia.
“E Adão pôs os nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo animal do campo; mas para o homem não se achava ajudadora idônea.
É nojento esses homens continuarem fazendo esse tipo de coisa, meu DEUS!”
Dessa forma, se trata de um livro de apropriação, conceito que também causa bastante discussão a respeito daquela pergunta “O que é o livro?”. Em 2009 o escritor argentino Pablo Katchadjian fez barulho com o lançamento de O Aleph Engordado, obra que inclui todo o conto O Aleph de Jorge Luis Borges, acrescido de outras tantas palavras. O americano Kenneth Goldsmith tem uma extensa pesquisa sobre a escrita não-criativa, como Day, em que todo o conteúdo de uma edição do New York Times é apresentada como livro, ou Sports, onde o que preenche o livro é a transcrição da transmissão de uma partida de beisebol - incluindo os anúncios, é claro. Sobre Goldsmith, cito um trecho de Leonardo Villa-Forte, grande estudioso brasileiro da escrita de apropriação:
“Ao transpor as transmissões orais/auditivas para meios de escrita/leitura, o conteúdo adquire novas dimensões. No calor dos acontecimentos, a natureza de uma transmissão fica em segundo plano, submersa na urgência das informações. Quando essas informações são deslocadas do rádio para o livro (deslocamento espacial), da oralidade para o texto (deslocamento de meio), e do momento em que poderiam ser úteis, momento em que descrevem ou alertam para algo que acontece em tempo real, para um outro posterior quando já perderam sua funcionalidade (deslocamento temporal), elas adquirem feições absolutamente novas.”3
Me aproprio dessa explicação do Leonardo porque isso é muito perceptível em Deus Deus. Os textos intercalados da Bíblia e do twitter ganham novas leituras tanto pelo contraste entre si - estamos falando dos mais despretensiosos pios da internet versus a própria palavra de Deus - quanto pelo contraste de cada um de seus suportes originais com o livro em que estão juntos.
Em resumo, Deus Deus oferece uma leitura divertida, uma experiência sensorial (visual e tátil) impactante e te deixa carregado de questionamentos por um bom tempo após a leitura, que ainda traz textos complementares bacanas sobre a criação da prensa, as representações de São Jerônimo e a trajetória errante da rede social - e olha que quando foi escrito o Elon Musk nem tinha comprado o twitter ainda…
“O presente livro deixou-se guiar pelo aleatório. Segundo Einstein, Deus não joga dados, portanto essa mistura não tem nada a ver com Ele.”
Trecho do excelente Escrever Sem Escrever, prato cheio para quem se interessou por esse papo de literatura ready-made.
Gosto desses livros, do Piqueira tenho A queda de Satã.