Franz Kafka, aquele famoso escritor tcheco (tecnicamente, quando ele nasceu a cidade de Praga era parte do Império Austro-Húngaro) tem um livro bastante famoso que se chama Carta ao Pai, que se trata de fato de uma carta endereçada ao seu pai, em que ele faz um longo desabafo sobre a conturbada relação deles e tenta colocar alguns pingos nos is de sua própria consciência. O livro foi lançado após a morte do autor e do destinatário, a quem a carta nunca foi enviada. Eu li esse livro mas já não lembro quase nada, li quando era moleque, uns 20 anos atrás.
Quem convive comigo já deve ter me ouvido falar assim, “quando eu era moleque”, para me referir à infância. É um trejeito vocabular que peguei do meu pai, e assim como alguns outros que uso, é mais ou menos proposital. Tem outras tantas coisas em mim que eu percebo que vem dele e são mais espontâneas ou acidentais. O quanto me surpreende percebê-las - talvez em outro momento eu diria “incomoda” em vez de “surpreende” - varia de situação para situação.
Outro livro que fala de relações conturbadas entre pai e filho e que eu li já adulto é A Morte do Pai, o início da hexalogia autoficcional de Karl Ove Knausgård, que tem aquela célebre frase de abertura: “Para o coração a vida é simples: ele bate enquanto puder. E então para.” Esse eu me lembro bem de ler, das desconfortáveis associações que fazia com a minha própria relação paterna e da sensação de medo que tive ao ler o que o autor sentiu quando seu pai morreu. O meu faleceu há duas semanas, e eu escrevo esse texto sem saber bem onde quero chegar com isso.
Kafka tinha 36 anos quando escreveu sua Carta ao Pai, que não chegou a ver publicada - nem sei se ele tinha essa intenção - a mesma idade que tenho hoje. Não que isso signifique nada, mas serve de gancho para falar de coincidências, já que na manhã seguinte ao velório do meu pai, coloquei o YouTube para tocar músicas aleatoriamente e a segunda que tocou foi Father Time, do Kendrick Lamar - que nasceu no mesmo ano que eu e portanto também tem 36 anos hoje - em que ele fala de como o convívio turbulento com o pai moldou sua relação com sentimentos em geral, e faz uma analogia disso com a sensação de beber uma bebida forte, sem gelo ou aperitivos.
“Acordando de manhã cedo,
trabalhando até nas folgas
Amor bruto, até o gargalo
Sem tira-gosto, uma dose pura”
Mas falando de idade, tem aquela coisa de que depois dos 30 fica incontornável aceitar que se é adulto e a gente começa a ver a história e as ações dos mais velhos de outras maneiras. Na última visita que fiz à sua casa, em dezembro passado, meu pai contou de ser ofendido e agredido pela polícia no contexto das greves metalúrgicas dos anos 70 no ABC paulista. Não em protestos ou piquetes, só por estar em um ponto de ônibus que o guardinha achou errado. Daí teria nascido sua vontade de protestar de fato.
Para exemplificar para as pessoas como ele podia ser cabeça dura, eu costumava contar que ele parou de frequentar a igreja depois de um desacordo com um padre a respeito da organização de uma festa paroquial. Conversando com a minha mãe esses dias, ela me explicou melhor a situação: A indignação do meu pai era porque o pároco resolveu conceder a operação do estacionamento da igreja (que era aberto) a uma empresa privada, como forma de levantar uma grana e, mais ainda, afastar as pessoas em situação de rua que, vez ou outra, se refugiavam por ali.
Grande parte do universo que é meu pai na minha cabeça tem a ver com trabalho, senso de obrigação, deveres e responsabilidade, necessidade de estar em dia com as contas, etc. Ter que lidar com trâmites burocráticos, tarefas indesejadas e despesas insuportavelmente urgentes que surgem nesse momento é uma crueldade que só reflete a crueldade do mundo de sempre, parte inevitável do processo.
De todo mundo que comuniquei a respeito de sua perda, só teve duas pessoas que avisei por telefone: Uma foi o meu irmão, assim que soubemos da notícia; e a outra foi o sujeito que era encarregado do meu pai numa montadora em que trabalhou por muitos anos. Quando precisei abrir o WhatsApp no seu celular, vi que esse cara ainda estava mandando mensagens normalmente, então escrevi brevemente contando o que houve e ele fez uma chamada para dar suas condolências.
No dia do velório, me ocorreu de ficar falando para as pessoas o quanto meu pai gostava delas, no que me pareceu a melhor forma de agradecer pela presença de cada um. Já nesse telefonema, o ex-colega do meu pai faz o contrário, ele que me disse que meu pai tinha orgulho dos filhos, de termos nos formado e tocarmos nossas vidas honestamente e tudo mais.
Tem um verso famoso do Edgar Scandurra naquela canção Dias de Luta que diz “Se meu filho nem nasceu, eu ainda sou o filho”. Mas se meu filho não nasceu e meu pai já morreu, eu sou o que?
Bastante gente tem se mostrado preocupada comigo e perguntado como estou - que sorte a minha ter esse carinho - e a melhor palavra que eu encontrei para descrever meu sentimento é “esquisito”. Parece que a realidade como um todo se tornou outra coisa e o que era a vida até outro dia não vai existir nunca mais. Quando vejo algum assunto que ele gostava, as sinapses viciadas da minha cabeça ainda pensam primeiro em comentar com ele antes de perceber que já não dá para fazer isso.
Parece que as letras de todas músicas e os roteiros de todos os filmes tem a ver com luto, porque é o assunto que ronda a cabeça o tempo todo, ou então com detalhes específicos da vida dele - ainda hoje, li o maravilhoso texto da Gabi Machado em que ela comenta sobre problemas de audição e não pude deixar de pensar que meu pai também falava muito disso, e tantos detalhes que ela menciona me tocaram, para além da discussão importantíssima sobre a negligência com a saúde associada a desigualdade social e como isso também atravessa nossa história.
Daí, o que eu consigo concluir até agora - fora essa coisa esquisita de às vezes querer falar sem saber o quê - é o fundamento presente nos conselhos mais óbvios e que não são clichês por acaso: Não espere para dizer as coisas; Aproveite quem está ao seu redor; Se cuide seriamente; Não desperdice seu tempo.
Obrigado por ler esse desabafo desnorteado, fique bem.
Rafael, seu texto me atravessou de tantas e tantas formas... te encontrei por acaso e fui completamente tomada por este texto. Também perdi o meu pai, e primeiro texto que resolvi publicar por aqui também é em referência a ele.
Escrever parece, de algum modo, nos sustentar diante da perda. Ainda que não sem alguma angústia. Você citou a música do Edgar Scandurra, que eu conhecia pela banda Ira!, meu pai era muito fã. Sempre que tocava essa música, ele aumentava o volume. Quando ele estava na UTI, coloquei a música para ele ouvir, e assim ele se foi.
Relembro agora os livros que li após a morte do meu pai, um deles é "Morreste-me" de José Luiz Peixoto. Deixo um verso para você:
"Descansa, pai, dorme pequenino, que levo o teu nome e as tuas certezas e os teus sonhos no espaço dos meus. Descansa, não vou deixar que te aconteça mal. Não se aflija, pai. Sou forte nesta terra nos meus pés. Sou capaz e vou trabalhar e vou trazer de novo aqui o mundo que foi nosso. Vou mesmo, pai. O mundo solar. Reconhecê-lo-ei, porque não o esqueci. E também o tempo será de novo, e também a vida. Sem ti e sempre contigo. A tua voz a dizer orienta-te, rapaz. Não se apoquente, pai. Eu oriento-me. Eu vou. Anoitece a estrada no que sobra da manhã. Chove sol luz onde está o que os meus olhos vêem. A carrinha grande que prometeste, que planeaste para nós, que ganhaste a trabalhar meses, leva-me. Onde estás? Na angústia, preciso de te ouvir, preciso que me estendas a mão. E nunca mais nunca mais. Pai. Dorme, pequenino, que foste tanto. E espeta-se-me no peito nunca mais te poder ouvir ver tocar. Pai, onde estiveres, dorme agora. Menino. Eras um pouco muito de mim. Descansa, pai. Ficou o teu sorriso no que não esqueço, ficaste todo em mim. Pai. Nunca esquecerei."
Temos que prosseguir Filho. Cada dia que passar vai nos mostrar como.