Ultimamente eu tenho gostado cada vez mais da ideia de começar a ler livros sem saber exatamente do que se tratam, acho que até já comentei disso aqui em alguma edição anterior. É difícil fazer isso com clássicos, mas no campo dos contemporâneos é bastante possível, mesmo quando a gente sabe que tal livro está sendo muito comentado, que ganhou prêmios e tudo mais. Foi o que me aconteceu com O Avesso da Pele, romance de Jeferson Tenório que ganhou o prêmio Jabuti em 2021, na categoria principal, que tem aquele nome esquisito de “Romance Literário”. Eu só sabia que o livro era elogiado pela crítica, que alguns amigos indicavam e que o pessoal costumava destacar o fato do autor ser negro.
Lendo, vi que essa observação vai além da representatividade estatística, já que o livro, que também tem uma pintura de um homem negro seminu na capa da edição que li, se concentra muito em refletir sobre os sentidos e consequências de ser uma pessoa negra no Brasil.
“A última vez que você viu seu pai, você tinha um ano de idade. Um ano. E é isso que você balbucia ao se aproximar do defunto. Você o olhou com o canto do olho e continuou a repetir: um ano de idade. Depois que seu pai foi embora. Depois que seus dedos foram prensados na porta. Depois que as professoras da creche te negaram comida. Um ano de idade, foi a única frase que você conseguiu dizer diante do pai morto. É assim que você vai se curar da culpa.”
E pode-se argumentar que toda obra de autoria negra vem carregada dessa vivência, que de forma implícita ou até subconsciente todo livro carrega a imagem de quem escreveu, mas neste não é preciso escavar nada. Tenório escreve sem meias palavras. Não há hesitação em relatar como o racismo contamina todos aspectos da vida de um negro, não se priva os leitores da crueza cotidiana dessa violência. A desgraça é destrinchada com direito a referenciais teóricos encaixados na narrativa e com personagens que representam diversas etapas da jornadas de identificação consigo mesmos e com o modo que o mundo reage à cor de sua pele.
O livro é narrado por Pedro, que intercala a própria história com a de sua mãe e de seu pai, recém falecido. Como na costura de uma colcha de retalhos ou ao se recolher fotos antigas para formar um álbum, essas três vidas são apresentadas em suas perspectivas singulares, de forma mais ou menos ordenada e sem grandes cerimônias, já que não é para um leitor genérico que elas se direcionam. Todo o livro é narrado por Pedro para seu pai morto, e conforme as páginas vão passando, há um certo incômodo de estar bisbilhotando a correspondência alheia, ouvindo uma história que não está sendo contada para você.
“Na época, você se preparava para prestar o vestibular, graças a uma ONG que mantinha um cursinho para pessoas negras numa igreja. Naquele momento, você não sabia bem o que queria fazer. Na verdade, você estava perdido, porque, até ali, a vida não passava de um amontoado de obstáculos que você tinha de superar. Resistir fazia parte da sua vida e você nunca havia se questionado por que as coisas eram assim. Nunca se questionou por que era pobre, nunca se questionou por que vivia sem pai. Nunca se perguntou por que a polícia o abordava na rua com tanta frequência.”
Talvez o incômodo esteja também em ler essas coisas, assim em segunda pessoa, sendo uma pessoa que não é negra. O exercício de se colocar no lugar dos personagens, tão comum da literatura, nesse caso vem acompanhado da certeza de nunca saber de fato do que estão falando, em sentimentos explícitos.
A negritude como tema central de O Avesso da Pele torna inevitável a associação, na minha cabeça, com outra obra que me marcou muito esse ano, o podcast do Projeto Querino. Focado na história do povo negro no Brasil, trata de temas específicos em cada um de seus oito episódios, que vão desde a importância da política de escravidão para a independência do Brasil, que normalmente é escondida nas aulas de história, ao papel central das negras e negros na criação do SUS, que todo mundo tanto celebrou (com razão) nesses anos de pandemia. Isso para eu não falar sobre o terceiro episódio, que trata da música, senão fico aqui o dia inteiro.
Além do podcast, há outros conteúdos disponíveis no site do Projeto Querino, como reportagens e um blog, e segundo seu idealizador, Tiago Rogero, ainda vem mais coisa por aí. Todo esse material compartilha com o livro de Tenório uma capacidade de causar sensações conflitantes.
São obras de excelência em suas formas, que são prazerosas de acompanhar, e ao mesmo tempo despertam indignação, tristeza, nojo… Me lembro que quando terminei de ouvir o primeiro episódio do podcast, fui escrever em redes sociais que o Brasil era um lugar desgraçado. Nossa dívida histórica é muito grande e os juros seguem crescendo.
“Por breves instantes o silêncio dominou novamente a sala. Enquanto isso, você observava os terapeutas. E pensou que eles não sabiam nada de vocês. Não conheciam o tumulto vital de vocês. Eles eram brancos. Vieram de uma classe média. E tinham uma visão limitada do mundo. Não perceberam o que estava acontecendo ali. Eles não faziam a mínima ideia de que a metade dos seus problemas estava contida na cor da pele, você pensou. Não diretamente, mas lá no fundo. Você sabia que tudo isso era mais complexo do que eles imaginavam. A psicanálise tinha cor e ela era branca, você pensou. E definitivamente havia coisas que escapavam a Freud.”
Por uma série de razões, tive dificuldade em escrever esse texto. Não sabia direito quais trechos do livro destacar aqui (tinha anotado dezenas), não sabia como começar o texto sem trazer direto para o enredo, até algumas questões mais pessoais me tirando a concentração nas últimas semanas. Daí foi virando uma bola de neve, porque a cada dia que passava, surgia um caso novo de racismo que eu pensava que poderia mencionar aqui para não passar em branco.
Houve o show da Ludmilla no Rock in Rio, que seria até um bom link com a edição #36 do Sinto Muito, que levantou o questionamento de por que a cantora não foi escalada para o palco principal e acabou com um monte de gente nada a ver querendo dizer o que era melhor para ela em estranhas colocações disfarçadas de conselhos. Depois teve o Vinicius Jr, que pode ajudar a gente a ser hexa, sendo perseguido lá na Europa por comemorar seus próprios gols. Agora a história da Luísa Sonza, que ilustra bem o quanto a gente finge não ver o tamanho do problema, conforme apontado no texto da Aline Ramos sobre o caso:
“A nota é inteiramente sobre si, parece até que ela é a real vítima da situação. Luísa fala sobre se tornar uma pessoa melhor, aprender e ter empatia. Mas como melhorar sem chamar racismo de racismo? Ao longo do texto, a palavra não é citada uma única vez.
No processo de luta contra o racismo, é de extrema importância que se chame o racismo pelo nome. Quando estamos doentes, só encontramos o tratamento correto a partir do diagnóstico da enfermidade. O mesmo ocorre com uma sociedade racista. Não chamar racismo de racismo é colaborar com a sua continuidade e não com o seu combate.”
O Tiago Rogero, do Querino, participou esses dias de outro podcast, o 451 MHz, da revista Quatro Cinco Um, e em dado momento é perguntado sobre o que se pode fazer na prática para enfrentar o racismo. Todo o papo é muito interessante e eu recomendo a audição, mas um exemplo que ele dá e está bem ao alcance de todos é o de votar em quem demonstre preocupações e compromissos em exercer mandatos antirracistas. É meio que o mínimo, não é?