João Gomes está em uma casa de pau a pique, iluminada por um lampião, quando começa a cantar. Ao seu redor há uma mesa de madeira com toalha de renda e uma garrafa térmica de café; um fogão 4 bocas e uma tv de tubo. Na parede, dois quadros com imagens de Jesus e Maria. O cantor se levanta e vai em direção à saída. Veste chapéu de vaqueiro e uma jaqueta de couro que nas costas tem bordada uma imagem de Nossa Senhora Aparecida. A casa está em cima de um gigantesco palco montado diante de um abarrotado Marco Zero, no centro do Recife, e quanto o ídolo do piseiro atravessa sua porta, a multidão vai ao delírio.
A cena é a abertura de Acredite, seu novo DVD - que não deve ser lançado em DVD, essa tecnologia obsoleta que ainda dá nome a especiais de música no Brasil - e foi lançada esses dias como primeira amostra do material. Segundo o cantor, foi importante fazer o registro em seu estado natal, pelo sentimento de familiaridade.
“Levanta cedo pra labuta que eu tô pronto
Eu muito conto com meu Deus que tá no céu
Eu tenho a senha pra correr em todo canto
Humildade e a disciplina dos sermão que mãe me deu
Eu tenho a senha e meu cavalo já tá pronto
E em cima da cela eu mostro que eu mereço meu troféu”
Alguns dias depois de lançar o vídeo, João Gomes se apresentou no Rock in Rio. Mesmo festival que na véspera foi tomado de assalto por um show impecável dos Racionais MCs. Fechando o palco secundário no segundo dia do evento, os quatro pretos mais perigosos do Brasil usaram o enorme telão do evento para chegar ao palco saindo de um trem do metrô paulistano. Partindo de polos distintos de vida urbana e rural, o que as entradas apoteóticas desses dois shows tem em comum é a exaltação da origem dos artistas. De certa forma, uma subversão do ideal glamourizado de sucesso.
Mais adiante, no mesmo telão do chamado palco Sunset, o grupo de rap exibiriu fotos de pessoas pretas mortas pelo estado (direta ou indiretamente) como a menina Ágatha, o imigrante Moïse e a parlamentar Marielle, e ainda botaram as dezenas de milhares de pessoas do público para ouvir as palavras do guerrilheiro comunista Carlos Marighella, assunto do Sinto Muito #18.
“No auge da Chic Show, nos traje,
Curtis Blow era o cara, curtição da massa,
era luxo, só viver pra dançar
Fui ver Sandra Sá, Whodini eu curti
A vitrine Pierre Cardin, Gucci, Fiorucci, Yves St Laurent, Indigo Blue
Corpo negro seminu encontrado no lixão em São Paulo
A última a abolir a escravidão”
Não tenho muito o que desenvolver dessa coincidência de ter visto as duas apresentações supracitadas na mesma semana. O recurso de incorporar elementos de cultura popular na produção mainstream tá longe de ser novo (vide nosso Cinema Novo, a semana de 22 que tá festejando centenário esse ano, exemplos mil) e já vimos algumas coisas do tipo por aqui, como no Sinto Muito #2, em que falamos do Ferréz, por exemplo.
Talvez a principal razão de eu ter aproveitado esse assunto tenha sido para mencionar um álbum que amo muito, do Douglas Germano. Escumalha é todo construído com estética periférica, saberes populares e homenagens a quem faz e registra a história da nossa gente. Tem até uma música para o poeta Manoel de Barros, citado aqui no Sinto Muito #7.
“Oratória pra Nossa Senhora com rosa de plástico e luz
Um São Jorge, um retrato pintado e um Sacré Coeur de Jesus
Yemanjá, Buda e Juremá, pés de arruda, espadas de Ogum
Figa, vela, alecrim, Preto-Velho, Dois-Dois
E um pão de Santo Antônio na lata de arroz”
Outra ocasião em que me lembrei de Escumalha por conta desses elementos foi ao visitar o 37° Panorama da Arte Brasileira – Sob as cinzas, brasa, em cartaz no Museu de Arte Moderna aqui de São Paulo, dentro do Parque Ibirapuera. A mostra “propõe desconstruir paradigmas naturalizados em relação ao Brasil colônia”, segundo o texto curatorial, e traz algumas explorações bem legais do cotidiano popular entre as variadas perspectivas do tema proposto.
São coisas que causam uma espécie de nostalgia abstrata. Elementos que não me remetem a nenhuma memória específica, mas compõem um cenário que toca, pela equivalência com rotinas e vivências que não existem mais para mim. Deixo aqui apenas dois exemplos, mas tem dezenas de artistas expondo suas obras por lá. Fica até janeiro e aos domingos é de graça.
Banho de Sol, de No Martins
Paralelos, de Éder Oliveira