Abril. De repente chegamos ao quarto mês do ano e já fica meio embaraçoso dizer que 2023 ainda está no começo. Olhando a mesma palavra por outro lado, um quarto do ano já passou. No jargão corporativo, que costuma dividir o ano em trimestres - ou quarters, assim em inglês - para acompanhamento de resultados, já passamos do Q1 para o Q2. No noticiário político, o costume é esperar uma semaninha mais e avaliar como foram os “cem primeiros dias” do novo governo. Mesmo com esse chorinho, não deixa de ser precipitado, já que o mandato é de quatro anos, então o que tivemos até agora foi só um quarto de um quarto, ou um dezesseis avos, como eu lembro que ensinaram na escola.
Mas falando de política, essa semana finalmente recebi aqui em casa a minha cópia de A Verdade Vos Libertará, livro de fotos da Gabriela Biló, com amostras do seu trabalho em um decênio que parte das manifestações do Passe Livre em 2013 e alcança este ano em que estamos enquanto escrevo. O tanto de história encapsulada ali faz parecer que é um intervalo muito maior, pela intensidade de tudo que andamos vivendo. Gostei de como a diagramação do livro realça as inacabáveis polarizações do período, como Aécio versus Dilma em 2014, manifestações pró impeachment e anti-golpe em 2015, até chegar no contraste entre a alegria da festa da posse de Lula e o horror da invasão de Brasília em 8 de janeiro. Fiquei contente, inclusive, por ter sido incluída no livro aquela polêmica foto de dupla exposição do Lula, de que tratamos a quente na edição #54 da Sinto Muito.
Quanto ao ano, outra forma convencional de dividi-lo em quatro partes são as estações, e nisso também já avançamos do verão para o outono. Outro dia, folheando meu exemplar de É Agora Como Nunca, antologia de poesia contemporânea brasileira organizada pela Adriana Calcanhotto, topei com um haikaizinho linho do Lucas Viriato que menciona a estação que há pouco deixamos para trás.
“haikai de verão
de infinitas lágrimas
e farelo de polvilho
são feitas as praias”
Ando meio encantado com os haikais, esse formato tão pequeno e tão regradinho de se fazer poesia. Nesse exemplo, o Lucas é fiel às temáticas, métricas e tudo mais do formato, e também a essa espécie de tradição contemporânea de achar o sublime escondido no banal, de subverter a grandiloquência da arte e de suas figuras. O velho mar de lágrimas banhando uma imensidão de biscoito Globo.
Uma coisa leva a outra e esse poema - e o fato de eu tê-lo encontrado já no começo do outono - me remeteu a uma canção do Bo Burnham, “That funny feeling”, que consta no seu famoso especial Inside, aquele que ele gravou inteiro no seu… quarto, durante o lockdown. É outra obra que também brinca muito com uma leitura cínica de signos poéticos e demonstra que no contemporâneo a contemplação é só mais uma forma de tédio que deve ser aplacada pelo hiperestímulo.
“…
o mundo na ponta dos seus dedos
o oceano à sua porta
…
aquele discreto clima de verão no começo do outono
a compreensão calada de que tudo há de acabarolha aí, de novo
essa sensação esquisita”
À primeira vista, imagens como o mar batendo à porta ou uma brisa de verão em abril podem soar algo parecidas como a promessa de vida que as águas de março fazem ao Tom Jobim, mas no contexto de Inside é muito mais uma constatação impotente de que o aquecimento global está se tornando irreversível. Eu adoro o uso da expressão that funny feeling, porque funny é “engraçado” mas também é uma forma de expressar desconforto, até dores físicas. Dizer que “meu estômago está engraçado” não faz sentido em português, mas um americano poderia expressar um mal-estar assim. A noção de comédia como geradora de incômodo e não relaxamento.
Outro quarto que anda ocupando minha cabeça o Quarto do Despejo, obra máxima da Carolina de Jesus, cujo título vem de uma metáfora da autora, em que, se a cidade inteira fosse uma casa, a favela seria este quartinho onde são largadas as coisas que não tem serventia. Pensar na cidade como um único imóvel demonstra o poder da poesia de Carolina, e eu tenho curtido bastante acompanhar a temporada atual do História Preta, dedicada à vida e a obra da escritora.
Recriando toda a trajetória de Carolina, o podcast combate estereótipos de que o seu sucesso editorial teria sido um acaso, que ela não sabia o que estava fazendo, etc. É toda uma vida de amor e sacrifício à literatura.
Por fim, essa viagem de quarto em quarto me levou a lembrar de mim mesmo, de um tempo em que todo dia eu escrevia as historinhas que depois encartei no meu 366 Microcontos.
“Visitou o quarto que a menina tinha dentro da boca.
Na saída, viu as três luzes do semáforo explodirem ao mesmo tempo.”
É engraçado que dessas trezentas e tantas micro-histórias, de algumas eu me lembro com mais frequência, e essa é uma delas, mas eu não lembrava de ser exatamente assim. Hoje eu não escolheria um bom tanto dessas palavras aí, coisa que agora não vem ao caso. Não dá pra arrumar o quarto bagunçado de uma foto antiga.