Todo filme, série e programa de TV tem uma sequência de abertura, que precisa captar a essência daquela obra e de alguma maneira antecipar o clima geral da trama em um tempo bem curto, para fisgar o espectador e prepará-lo mentalmente para receber a história da melhor forma possível. Tem até um site bacana sobre isso, o Art of the Title.
Na literatura, não costumamos pensar tanto nesses termos, mas pode ter certeza que há muito pensamento sobre a abertura dos livros. Capa, orelha, guarda, folha de rosto, sumário, prefácio… uma edição que se preze trabalha tudo isso em benefício da experiência de leitura. Um elemento que agrega muito significado à “recepção” que um livro faz ao leitor é a epígrafe, aquela citação que costuma vir perto das dedicatórias, tomando emprestado uma reflexão ou frase marcante de outra obra para esquentar a cabeça de quem tem o livro em mãos.
Em Teimosia e Memória, livro de poemas de Marina Schneider, me deparei com um tipo de epígrafe que nunca tinha visto, um verbete de dicionário. Antes de revelar sua poesia, a autora nos apresenta um adjetivo.
“LENITIVO (s.m);
que suaviza, acalma, adoça, abranda, suaviza os alivia dores.”
Ironicamente, a palavra não aparece em nenhum dos poemas do livro, mas serve para demonstrar um tipo de relação com as palavras, esse caráter de ourivesaria com que poetas trabalham seus textos. Antecipa também a forma com que Marina aponta caminhos no decorrer leitura. Digo isso porque uma particularidade formal de seus poemas está em versos finais grafados entre colchetes. Breves comentários que servem de conclusão ou explicação às estrofes anteriores.
“gato preto em sala cheia
a solidão só existe
quando estamos rodeadas de pessoas.
caso contrário,
é conforto mal aproveitado.[escrito antes da quarentena acontecer]”
Essas notas que a poeta inclui no seu trabalho ajudam a ver um pouco do processo de elaboração da poética, aproximam o fazer poético de atividades e pensamentos mais banais, de certa maneira até contesta aquela mística de que poesia é coisa difícil de entender. Se for assim, afinal, que mal há em explicar um poema?
Por coincidência, logo que terminei Teimosia e Memória, ainda às voltas com ele na cabeça, fui ler Poste é Tudo Igual, zine do Aikau Meloni que comprei na Ogra, feira de quadrinhos independentes que rolou aqui em São Paulo na semana passada, e fiquei contente de ver que também vinha com uma explicação no final.
Aliás, dizer que fui ler o zine do Aikau talvez seja impreciso. Minha expectativa é que fosse uma história sem texto, como seu livro anterior, Craveiro, que conta só com desenhos uma história de romance que subverte alguns modelos de HQs tradicionais - não quero detalhar para você ir atrás do livro.
Mas dessa vez, além de realmente não ter texto, a obra não tem nem uma narrativa clara, só uma sequência de desenhos de postes que te deixa com a pulga atrás da orelha. Aonde ele tá me levando?
“Poste é tudo igual.
Uma frase afirmativa que me soou interrogativa aos ouvidos: será? Resolvi descobrir.
O resultado é esta publicação que você tem em mãos, minha resposta em forma de pergunta: Poste é tudo igual?”
Dizem que o artista serve para transformar o espírito do tempo em algo compreensível, por caminhos distintos do método científico. Às vezes, como terapeutas, podem fazer isso por provocação.
O primeiro poema do livro de Schneider traz algo de que já falamos no Sinto Muito #22, uma definição de coração:
“corações,
mais barulhentos do que o silêncio
formados por camadas e camadas de tinta vermelha
que escondem, pouco a pouco,
tudo aquilo que dorme
e segue acordado.[abro a porta para você entrar]”
Para desmanchá-la nos versos que encerram o livro:
“minto o livro inteiro.
(…)
não sei do que nossos corações são feitos,
mas não quero saber, quero sentir.[há uma semelhança entre o pulsar
e a batida de asas das libélulas]”
Sentir em vez de saber. Explicações de poetas talvez sirvam para isso. De um jeito lenitivo, sem a didática fria dos dicionários, dão motivos que se deve suspeitar, transformam afirmações em perguntas, apontam caminhos para que a gente também sinta a poesia que há em coisas tão corriqueiras quanto um poste.
"Dizem que o artista serve para transformar o espírito do tempo em algo compreensível, por caminhos distintos do método científico. Às vezes, como terapeutas, podem fazer isso por provocação."
Ler isso foi legal demais. :)
Fiquei querendo ver os postes (Posts são tbm iguais?)