Outro dia eu estava bodeado em frente à TV e me ocorreu que talvez um reality show de competição fosse a distração que eu precisava naquele momento. Algo que não me fizesse pensar em nada, sabe como é. Zapeando pelas plataformas de streaming, acabei encontrando O Grande Brunch, disputa culinária da HBO Max focada na tradição de tomar café da manhã tão tarde que acaba valendo também pelo almoço.
Achei ótimo, só o plano de não pensar em nada que infelizmente não funcionou. Não pude evitar reparar o quanto o programa contrastava com outros realities de cozinha, que costumam ter seus ápices narrativos em intrigas entre os participantes ou em esculachos dados pelos jurados. O Grande Brunch funciona ao contrário. Apesar de ser uma competição, é muito mais sobre aceitação e acolhimento.
Há um episódio em que os participantes precisam se dividir em duas equipes, cada uma liderada pelo cozinheiro que se saiu melhor nas provas anteriores. Quando chega o momento de separar o restante dos times, é feito por sorteio, destacando que é para ninguém se sentir mal sendo o escolhido por último, como era nas aulas de educação física. O próprio formato de competição é subvertido várias vezes: Sempre que alguém vai levar sua comida para os jurados provarem, são seus competidores que ajudam a carregar os vários pratos até a bancada; Tem uma prova em que todo mundo vai mal, e a produção resolve dar outra chance para fazerem o desafio de novo.
Mais do que em termos de regras e avaliações, é através da seleção do elenco que fica mais evidente que os verdadeiros temas de O Grande Brunch são congregação e pertencimento. São participantes de diversas origens e fisionomias. Muitos tem na alimentação um elo com a ancestralidade de suas famílias migrantes; há um chef vegano que em nenhum momento é constrangido a cozinhar ou comer nada de origem animal; há participantes de variadas orientações sexuais e gêneros.
Daí fiquei pensando em Catie, participante não-binárie da competição, quando li Uma Kartilha para Pessoas Não-Bináries Iniciantes, zine de Dani Silva e Gal Cntra1, cujo título é bastante autoexplicativo. Escrito em segunda pessoa, soa como um oráculo que, ora bem-humorado, ora mais grave, é sobretudo sincero e, portanto, acolhedor.
“você terá um mullet y/ou irá descolorir o cabelo
você, pelo menos em algum momento, irá dividir uma casa com seis pessoas ou mais você não irá no funeral de alguns parentes ou se despedir de algumas pessoas—————-
você aprenderá tarde demais a dizer ‘não’_____________”
Reproduzo na citação as linhas que Dani e Gal usam como recurso de diagramação do zine, porque mais adiante elus usam outros sinais para isso de acordo com o contexto, e eu achei isso brilhante.
“você irá se endividar tentando pagar as suas contas $$$$$$$$$$
você terá gatos ==^.^==
a poliafetividade vai te pegar mais cedo ou mais tarde <3sz<3s2s2sz</3”
Impresso em um formato clássico de zine de uma folha A4 dobrada, a liberdade ortográfica e de diagramação, com o tamanho da fonte variando de um conselho pro outro, faz da Kartilha também uma subversão do formato da Cartilha, que implica em algo formal e sisudo, até burocrático. Dani e Gal criam uma publicação carismática e vibrante em estilo.
Em O Grande Brunch2, os momentos mais pesados são os depoimentos de cada participante contando tudo que teve de abrir mão para ser quem é, desde gente que perdeu contato com a família por homofobia até quem não fala mais com os pais apenas por se dedicar à gastronomia, em vez de outras profissões supostamente mais seguras. Por um caminho muito menos mainstream, Uma Kartilha para Pessoas Não-Bináries Iniciantes oferece o mesmo cuidado e carinho a quem lê. E, levando ao pé da letra, eu nem sou o público alvo delus, mas também me senti abraçado, porque essas obras que falam sobre se olhar e aceitar de verdade fazem bem para qualquer um, e para a gente como um todo.
“você fará uma faculdade que ninguém vai entender y, muito provavelmente, você não terá emprego (você não vai trabalhar na sua área, você vai trabalhar em subempregos, mas é só uma fase - eu prometo) ————————-”
Na capa do zine tem os @s em vez dos nomes, então que se registre: https://www.instagram.com/wolotov/ e https://www.instagram.com/ccc0ntra/
Falando tanto em brunch é inevitável lembrar do
, newsletter vizinha de substack tocada pela minha amiga Tássia.
Obrigada pela lembrança e citação! Fiquei curiosa para ver o Grande Brunch! :)
Que delícia ler isso de manhã, vou assistir e ler. Influenciado por você =)