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Na edição de novembro da Revista Piauí tem um texto de Felipe Botelho Corrêa, do Projeto Querino
, sobre Lima Barreto. Sobre seu caráter canônico e sobre como o senso comum acerca de sua obra precisou ser atualizado conforme o debate racial evoluía no Brasil e no mundo. Há dois momentos marcantes em que seu legado foi revisitado. Em 1956, quando Francisco de Assis Barbosa organizou a edição de sua obra completa em dezessete volumes, e em 2017, quando Lilia Schwarcz publicou sua biografia Lima Barreto: Triste Visionário e o autor foi o homenageado da Flip, a Festa Literária de Paraty.Nesta mesma edição da Flip, a editora Lote 42 organizou uma residência artística coordenada por Gustavo Piqueira, na qual quatro artistas teriam quatro dias para desenvolver um material a ser publicado junto de uma seleção de crônicas do autor celebrado na festa. O resultado foi o livro Novos Mafuás, de Lima Barreto, Daniela Avelar, Henrique Martins, João Montanaro e Vânia Medeiros.

O livro começa com um ensaio fotográfico de suas próprias páginas jogadas à beira da praia, banhadas pelo mar - Para que fosse minimamente razoável a concepção e produção do livro nas 96 horas da Flip, eles já chegaram com as crônicas de Lima impressas - na sequência há a reprodução de trechos de uma carta do século XVIII ao rei D. João VI, em que se conta sobre a região de Paraty; e só então os textos de introdução do livro, sendo um de Piqueira, que ironiza não poder garantir se é um bom livro, já que este trecho também foi escrito e impresso antes da residência começar. Por estes exemplos, você pode perceber que o tempo é um assunto recorrente da obra. Como mesclar artigos centenários com novos conteúdos de forma coerente? Por que os escritos de Barreto continuam soando tão presentes? O próprio cronista, a certa altura, conta que recebeu de presente uma porção de jornais de décadas passadas, caso quisesse procurar ali algo de seu interesse:
“E se são assim cômicos e sugestivos os apedidos que encontrei nos retalhos do jornal que me foram dados, não são muito menos os anúncios que neles achei.
Guardei os que tratavam de escravos. Vejamos. Secundino da Cunha, um leiloeiro do tempo, devidamente autorizado, em 20 de janeiro de 1868, anunciava vender, além de móveis, piano, joias e trem de cozinha, 15 escravos ‘de ambos os sexos, todos boas peças’.
[…] Não parece que isto se passou há 2 mil anos? Pois não foi.”
Tempo vai, tempo vem, me ocorreu de associar o livro com uma produção bem mais recente, lançada mês passado, o documentário Racionais MCs: Das Ruas de São Paulo pro Mundo, de Juliana Vicente. Isso porque Lima dizia não se cansar nunca de protestar, que sua vida seria “um protesto eterno contra todas as injustiças”, e os Racionais também se dedicam a expor a dureza das contradições urbanas e como a periferia e os pretos sempre pagam mais no fim das contas.
Até naquela cisma com o tempo dá pra dizer que as duas obras conversam. Se os residentes artísticos de Paraty estão cem anos distantes de Lima Barreto, a diretora Juliana Vicente, Edy Rock, KL Jay, Ice Blue e Mano Brown estão mais de três décadas a frente dos momentos em que a carreira dos Racionais começou. Décadas de uma história que faz um século parecer pouco. As imagens de arquivo resgatadas e organizadas pela produção são um ponto forte do documentário, bem como o delicado diálogo entre as falas dos Racionais de agora com as dos vários altos e baixos ao longo de sua trajetória.
Numa fala bastante forte, Blue comenta que, enquanto ele ainda criança teve de se acostumar com a presença frequente de cadáveres largados nos arredores da rua em que morava e do campinho onde jogava bola, muito adulto bem nascido de hoje não se conforma de vê-lo frequentar os mesmos restaurantes que eles.
Sobrevivendo no Inferno foi minha carta de alforria.
Ice Blue
Esse tema da aceitação, de como a gente vai se acostumando com as coisas quando muitas vezes não devia, também é colocado em Novos Mafuás. Nas intervenções criadas pelos residentes fala-se de comportamentos naturalizadas na Flip, como vigilantes patrimoniais permeando a literatura; expressões estrangeiristas nomeando barcos de passeio; até mesmo um sujeito escravizado de mentirinha que atua como atração turística de Paraty. Inevitável devanear imaginando a crônica que Lima Barreto escreveria a partir disso.
“Como ele nasceu sem nenhum desenvolvimento mental e não pôde por sua falta de vontade adquirir qualquer espécie de instrução, o Nicomedes tomou a resolução de se fazer literato. Porque não há nada mais fácil para um sujeito analfabeto do que se fazer escritor, poeta e literato.
O governo pede carta para cocheiro, mas não pede para literato. Sendo assim todo o sujeito que não dá pra nada se julga no direito de escrever para os jornais, embora não saiba direitamente letras.”
Mas eu liguei o livro com o filme também porque assisti a um enquanto lia o outro. E depois de ver o filme, dei uma exagerada em ouvir as músicas dos Racionais e episódios do Mano a Mano, a ponto de em dado momento a minha cabeça ler as crônicas do Lima na voz do Brown, e isso dava um efeito curioso. Tente imaginar.
“A vida não é feita nem constituída de negócio de açúcar, como pensa o sócio do Pereira Lima, agente por demais sabido de vários trusts açucareiros.
A vida é complexa, pede muitas atividades, pede muito pensamento.
Se o senhor enriquece ou enriqueceu com açúcar, não sabe quanta dor, quanto sofrimento, quanto sangue, custaram os maquinismos com que o açúcar é fabricado nas suas usinas.”
O subtítulo do filme sobre os Racionais, Das Ruas de São Paulo pro Mundo, pode ser lido obviamente como a trajetória da banda, mas também como uma descrição do enfoque dos assuntos abordados. A partir das ruas de São Paulo, o filme trata de temas universais como a desigualdade, a arte e o sentimento de dever. Novos Mafuás, ao usar o texto de Lima Barreto como base para discutir o livro como objeto e o mercado literário, aponta, desde Paraty, para a história do Brasil e dos brasileiros, que também não se encerram nas fronteiras do país, são sempre mais.
Já falamos do excelente podcast do Projeto Querino no Sinto Muito #37