Tirei a semana passada para descansar. O outubro mais longo de nossas vidas culminou numa catarse ainda um pouco insegura, aí teve a ressaca na segunda, o feriado na quarta, de repente a semana passou. Além disso, ainda entrei em férias, aí a própria ideia de semana com começo, meio e fim fica um pouco volátil.
Para me ajudar a reiniciar a cabeça, resolvi tirar a poeira do videogame com um joguinho que já queria experimentar há algum tempo, Unpacking, do estúdio australiano Witch Beam. Consiste basicamente em abrir caixas de mudança e distribuir o que sai delas pelos espaços disponíveis em determinados ambientes. É simples em termos de jogabilidade e surpreendentemente complexo em matéria de narrativa.
Sem sequer mostrar a personagem que habita os cenários a serem preenchidos por quem está jogando, o jogo revela o desenrolar de sua vida, suas conquistas e fracassos, tudo baseado apenas em variações de espaços e objetos. Nesse momento em que eu estava buscando aliviar os pensamentos, veio a calhar um game cujo desafio está em arrumar a gaveta de talheres, e não em fugir de zumbis ou correr atrás de um dragão.
Outra ideia que tive para aproveitar as férias nesse sentido foi que eu inventei de comprar um estojinho de aquarela, que automaticamente me despertou o alerta de que precisaria desenhar para ter o que pintar com as tintas. Por sorte, me lembrei que tinha aqui em casa a zine Mata Tédio, da Laura Mazzo, e aí fiquei tranquilo.
“Essa é uma zine interativa!
Feita pra te entreter durante aquela reunião de zum infinita, pra matar o tempo na fila do banco no horário do almoço, pra matar o tédio numa viagem de ônibus…
Feita pra rabiscar enquanto fala no telefone.”
Cada página desse livrinho traz um desafio de desenho ou algo correlato, partindo de uma peça já começada por Mazzo ou apenas por um enunciado em texto, como “Faça uma lista”. Tudo bem despretensioso, de modo a não pressionar quem vai preencher o espaço livre da publicação. Aliás, o aspecto descontraído de um zine, de folha sulfite branca grampeada, sem o jeitão cerimonioso dos livros de editora, contribui muito para a experiência. É um baita exemplo de publicação adequada a seu formato.
Em um artigo de Daniel Galera1 sobre Unpacking (recheado de detalhes da trama que eu evito citar), o autor o compara a um exercício tradicional de escrita literária: Narrar uma história apenas com descrições, sem nenhuma ação. De fato, é uma comparação que faz bastante sentido, já que os recursos que restam são os usados por Wren Brier e Tim Dawson, criadores do jogo, para compor os personagens e o arco narrativo. A paleta de cores de determinados itens pode revelar traços de um personagem; uma mudança em detalhes de um objeto entre uma cena e outra conta algo que aconteceu e como a protagonista lidou com isso… até elementos da mecânica, como o fato de alguns objetos poderem ser manipulados e outros não, ajudam a compreender o que está se passando. Algumas vezes, reconhecer os objetos que saíam das caixas me fez sorrir, sentir ternura e compaixão pelas personagens ocultas.
Centrado na dinâmica de interatividade, Mata Tédio acaba sendo também um jogo narrativo. Ao se deparar com as insólitas propostas da autora, você se vê de repente criando uma história relâmpago através de cada imagem, e o resultado é sempre uma surpresa divertida para você mesmo, como um sistema de recompensa bem calibrado.
E o que tem a ver um celtinha tunado, uma girafa com colares e o bigode do Stalin (que também aparece no zine), além de estarem todos em Mata Tédio? Sei lá, mas de alguma forma a coisa toda parece coerente. Laura constrói - com a sua ajuda! - um panorama mental de uma geração que é sobrecarregada de estímulos, referências e preocupações demais para ser linearmente lógica. A cada ideia maluca que propõe, ela abre uma caixinha de mudança na sua cabeça e você sempre acaba encontrando um canto no papel pra acomodar o que tira de lá.
Falamos sobre o Daniel Galera na primeiríssima edição deste Sinto Muito.