"Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.”
Carlos Drummond de Andrade, o poeta mineiro de quem falamos no Sinto Muito #22, publicou esses versos há quase um século, no conturbado ano de 1930. A estrofe final do “Poema de Sete Faces” me voltou à mente depois de assistir a Marte Um, dirigido pelo também mineiro Gabriel Martins, nesse também inflamado ano de 2022. Não tanto pela lua nem pelo conhaque, mas justamente por custar a entender minha comoção. Enquanto olhava para a tela com olhos marejados, pensava “o que há com esse filme que me deixa assim?”
A primeira cena acontece na noite do segundo turno de 2018, quando Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. Daí em diante a política partidária é pouco citada, mas já estamos suficientemente informados do que rodeia o núcleo familiar do casal Tércia e Wellington e seus filhos Eunice e Deivinho, os protagonistas da história.
Cada membro da família tem seus arcos narrativos bem construídos e costurados entre si, e acompanhamos todos deles sob a nuvem de tensão do Brasil desses tempos. É até um pouco difícil descrever a delicadeza das relações apresentadas e o medo constante de que algo possa se quebrar. São duas horas de nó na garganta e edificação de carinho pelos personagens. De presenciar o afeto sentindo o ódio à espreita.
Em dado momento da sessão que eu assisti, um sujeito se levantou para fazer qualquer coisa fora da sala e, quando voltou, resolveu acender a lanterna do celular para encontrar seu assento. Um outro gritou reclamando para que ele apagasse e ele respondeu algo como “vou apagar nada, se achar ruim vota no Lula”. É uma situação tão estapafúrdia que eu até entendo se você achar que eu estou inventando, mas aconteceu de verdade. E quando aconteceu eu logo fiquei com medo de alguém acabar atirando em alguém no meio do cinema, porque minha cabeça agora faz esse tipo de associação. No fim ficou só na anedota mesmo.
E assim como não teve tiro no cinema em que eu estava, Marte Um não tem a violência física que o senso comum espera de um filme brasileiro que começa a se destacar. Tem seus pontos traumáticos e a tragédia latente da vida na periferia, além de outras violências que perpassam o cotidiano, mas é sobretudo o drama de uma família batalhando seu dia-a-dia, com todos os diferentes medos que cada um deles tem que enfrentar.
Como sempre, não estou dando muitos detalhes da história aqui para não correr o risco de prejudicar algo da sua experiência. Além disso, no caso desse filme nem me parece preciso. Tive uma sensação muito intensa de identificação com a família de Deivinho, ainda que não tenhamos detalhes específicos em comum. Há uma atmosfera de cumplicidade que talvez só quem viveu consiga reproduzir em arte, como tratamos no Sinto Muito #36. Marte Um foi realizado com recursos do primeiro edital para longas-metragens de realizadores negros do Brasil1, em 2016.
Agora o filme representa nosso país na disputa por uma indicação ao Oscar de “Melhor Filme Estrangeiro”. Se vencer, eu não sei dizer o que teria como consequência prática. Talvez, pra citar Drummond de novo, não seria uma solução, mas teria algum quê de justiça poética. Ainda mais se quando a premiação acontecer, em março de 2023, o presidente do Brasil já não for mais Bolsonaro.