Tá chegando a data da cerimônia do Oscar 2024 e talvez seja conveniente falar sobre minhas apostas, palpites e preferências para a disputa. Ou seria, já que assisti a apenas um dos filmes indicados, e mesmo desse ainda saí da sessão sem saber expressar muito bem o que tinha achado. Falo de Pobres Criaturas, do diretor grego Yorgos Lanthimos.
Recapitulando o momento, estava claro para mim que fiquei bastante desconfortável com o filme, mas a princípio não pude ignorar o quanto ele estava sendo celebrado por muita gente que eu conheço e acompanho nas redes sociais. Meu desconcerto tinha um pouco a ver com a suspeita de que eu estava sendo chato, lendo o filme errado ou algo do tipo. Depois fui ver outras críticas e vi que não é esse consenso todo, que muita gente apontou o que me incomodou também e tudo mais. Mesmo sem ineditismo, resolvi comentar sobre minhas impressões.
Já que estou chovendo no molhado, não custa reforçar que eu também achei a direção de arte muito interessante, a fotografia muito bonita, a música muito competente, etc. A forma como os aspectos mais formais de imagem (cor, distorção de lente, edição) se comportam de acordo com a idade cerebral da protagonista é um ponto alto para mim - como pode ser notado pela menção à idade cerebral, esse texto vai ser um festival de spoilers do filme, tá? -, o uso de cartelas delimitando cada ato do enredo também tem muito a ver com meu gosto, mas esses êxitos técnicos não compensaram a própria trama contada, na minha experiência.
Não que eu estivesse esperando realismo, mas gostaria que as lacunas e reviravoltas do filme servissem para que o roteiro se sustentasse segundo as próprias regras implícitas; não que eu esperasse um filme panfletário ou asséptico de acordo com o temido politicamente correto, mas que não fosse uma romantização de uma série de abusos, violências e precariedades.
O caso é que, do jeito que o filme me bateu, Bella Baxter (Emma Stone) parece a materialização da fantasia de algum cara viciado em pornografia. Uma criança com corpo de adulta (ou uma mulher com mentalidade de criança, se quiser suavizar um pouco) que está disponível para ser moldada pelos homens ao redor e que tem um superpoder de transar a qualquer hora e com isso resolver qualquer problema que possa estar acontecendo. Me soou como se o filme defendesse que prostitutas são apenas mulheres que gostam de transar o bastante para fazer disso profissão; que crianças podem ter discernimento para escolher transar com adultos; que ver a mulher que você adotou como um objeto sexual é razoável a menos que por um infortúnio isso te seja fisicamente impraticável. Todas proposições esdrúxulas mas desgraçadamente comuns de se ler e ouvir por aí.
“My, what a very pretty retard”
Max McCandles (Ramy Youssef) ao conhecer a ainda pueril Bella
Recentemente li Brava Serena, romance de Eduardo Krause cujo centro narrativo é a relação de amizade entre um senhor viúvo que se muda para a Itália e uma jovem que conhece por lá, filha da proprietária do quarto que ele aluga. Eu achei muito acertado como o livro vai equilibrando, durante a aproximação dos dois, o fato de ele reconhecer que ela é extremamente atraente (para os outros) com a ternura que ela desperta em seu coração saudoso da própria filha, resultando em algo que não é nem uma paixão, nem uma relação paternal óbvia.
“Serena saltita na frente, me guiando rumo à entrada. Bunda pra cá, cabelo pra lá, fazendo os rapazes ao redor se cutucarem. Todos mantêm olhos fixos em minha amiga, alheios a mim. Ela, alheia à fila. Diante da porta do lugar sem nome, nos deparamos com um maciço segurança. Aparentemente, um dos tantos refugiados com os quais evito contato visual pelas ruas de Roma. Negro retinto, ombros intermináveis, expressão fechada e olhos bem abertos.
[…] Pergunto se Jawari é alguma senha ou saudação secreta. Serena conta que é o nome dele. Significa "paz amorosa" em senegalês.
Comento que nunca um nome combinou tão pouco com uma pessoa. E fico envergonhado quando ela diz, sempre em italiano, que é uma pena pensar assim.”
Infelizmente, lá pelas tantas, o autor acaba imprimindo no texto algumas suspeições a respeito da relação deles que deixa essa singular intimidade correndo risco de se tornar um enigma do tipo “e aí, comeu?”. Uma derrapada, mas não deixa de ser um bom livro por isso.
O que une esse romance a Pobres Criaturas me motiva a citá-lo é uma espécie de fraqueza dos autores perante as próprias personagens, como se não resistissem, eles mesmos, a importunar as mulheres que criaram.
A propósito, assim como Brava Serena, Pobres Criaturas é um romance escrito por um homem (o escocês Alasdair Gray), que foi adaptado ao cinema por outros homens, o roteirista australiano Tony McNamara e o já citado Lanthimos. Não estou propondo, é claro, que nós homens não possamos escrever sobre mulheres, só que é importante ter em conta que todo acumulado de ser homem na nossa cabeça provavelmente vai interferir na produção, e aí vai de cada um ver como prefere lidar com isso.
Penso em personagens femininas que tem essa mesma característica de se destacarem perante os olhos alheios e foram escritas por mulheres, como a Tsugumi de Banana Yoshimoto, a Nadine de Luiza Romão ou a Lila da tetralogia A Amiga Genial, de Elena Ferrante. Elas não são mais virtuosas nem mais afortunadas que Serena ou Bella. Pelo contrário, podem até sofrer mais ou serem mais difíceis, o que em termos de construção de personagens, tende a ser um sucesso.